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    Arquivo: Edição de 15-10-2009

    SECÇÃO: Crónicas


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    Os tomates do padre Sovinal

    No canto mais humilde da Praça do Mercado, onde o sol entrava de esguelha, esparramando-se, depois, langorosamente, por todo aquele espaço, tinha a tia Basilissa o seu posto de venda. Herdara-o da mãe e quase podia dizer que era dali natural. A mãe, Ludovina de sua graça, pusera--a no mundo numa fria tarde de Janeiro e, logo na manhã seguinte, e, porque não tinha ninguém com quem a deixar, levara--a consigo para o trabalho. De velhas caixas de madeira, o marido tinha-lhe feito um berço e ela aproveitara roupa de cama já muito usada para fazer lençóis e cobertores que protegessem a sua menina dos humores do tempo.

    Desde bem cedinho até que o Mercado fechasse, a criança ali ficava debaixo da lona, entre sacos de legumes, caixas de fruta e aves de capoeira de pernas atadas com baraços, sob o olhar atento da progenitora, alheia ao movimento dos raros fregueses que ultrapassavam a linha do sol, perguntavam preços, pechinchavam e só de vez em quando faziam negócio, não obstante a apertada margem de lucro que a vendedora acrescia ao preço dos produtos, levando em conta ainda as taxas para a Junta de Freguesia e a Câmara Municipal. A gente que ali arribava e que, em geral, trazia as moedas bem contadas e apertadinhas na palma da mão, não fosse perder alguma, que todas faziam falta, enternecia-se com a criança, as mulheres perguntavam como se chamava, faziam-lhe festas e, comprassem ou não, deixavam expresso um carinhoso augúrio:

    - Que Deus a crie para uma boa sorte!

    - Muito agradecida – respondia a mãe emocionada – e a si que a não desampare!

    A menina foi-se desenvolvendo, – felizmente era forte e resistiu com bravura a todas as doenças que atingiam a pequenada com recurso à tradicional sabedoria popular e só em último caso ao Hospital da Misericórdia – cresceu, andou na escola até completar a 3ª classe, o bastante para não precisar de expor a sua vida à bisbilhotice de vizinhos com mais letras e para não se enganar nas contas do negócio, porque um pequeno erro em margem de ganho tão curta também a elas fazia enorme diferença, ajudou a mãe enquanto esta teve saúde, assistiu-a na doença que lhe abreviou os dias, casou e teve filhos. Por ali ficaria enquanto Deus fosse servido.

    Tinha clientes fiéis que enchiam o saco das compras por menos dinheiro do que noutro lugar, levavam e traziam novidades sobre a vida de vizinhas e conhecidas; havia alguns ocasionais, hoje pousa aqui amanhã pousa acolá, vinham consoante as suas conveniências e oportunidades. Pessoa habituada a estas lidas, recebia todos com a maior gentileza e discrição e não foi por ela, seguramente, que a história do Padre Sovinal veio a entrar no anedotário citadino.

    À entrada da praça, mal se via negrejar aquela batina, encimada pelo rosto nédio e bem-disposto do clérigo, um frémito percorria toda a área como brisa soprada por um geniozinho travesso. Do outro lado da coxia, alguém avisava:

    - Ó Basilissa, olha quem vem lá. Trata de afiar a língua e calar o coração, amor!

    Por essa altura, o sacerdote dirigia um lar de idosos ali para os lados do rio Fervença e todos os dias vinha abastecer-se de hortaliças e fruta da época: maçãs de pequeno calibre, a que o vulgo chama, depreciativamente, malapas; peras e laranjas que mal conseguiam disfarçar o nanismo; ameixas que os pássaros rejeitavam por mais que tivessem ultrapassado a madureza; e assim por diante. Apresentava-se à hora em que a Praça tinha um aspecto de semi-abandono, as bancas quase vazias, povoadas de xepas pouco mais do que imprestáveis. Antes de escolher o menos mau que restava, apreçava, regateava, tinha artes de espremer a negociação até ao limite. Os tomates, pela sua variada aplicação em culinária, entravam, diariamente, no seu cabaz de compras. E porque os tomates se prestam a segundas interpretações, as vendedeiras tomaram-nos como motivo condutor dos seus comentários brejeiros. Quando um artigo perecível mostrava já um certo ar de degradação e fraco préstimo, costumavam dizer:

    - Está c’m’ ós tomates do Padre Sovinal!

    Anos antes, esse eclesiástico fora ecónomo do Seminário Maior de Bragança. Tido em grande conta no Paço Episcopal devido aos seus dotes de administrador, mas anatematizado pelos alunos desse estabelecimento de ensino e de formação moral, largas dezenas de rapazes em fase de crescimento, submetidos a um regime alimentar espartano, por lá se manteve largo tempo. Diga-se que o conceito de que gozava na cidade não era muito lisonjeiro, devendo-se-lhe generosa quota-parte de responsabilidade, graças à vaidade, que revelava em auto-elogio. Certa vez, encontrando um amigo, conceituado comerciante na cidade, assim exemplificou os seus métodos de poupança:

    - Veja o amigo, na semana passada, comprei um peru que pesava mais de quatro quilos. Mas também deu para três vezes! – e enfatizava esta última frase. – à primeira, mandei fazer uma arrozada c’os miúdos: coração, fígado etc. ; à segunda, um guisado de batatas, tomate e pimentos às fatias, c’o as asas, as patas e o pescoço do animal; finalmente as coxinhas com massa.

    E fazia acompanhar a exposição com gestos exuberantes.

    - Mas falta o melhor, o que fez com o resto do animal – indagou o amigo, malicioso.

    - O que fiz com o resto? Há mais gente, lá, para alimentar além dos estudantes… E garanto-lhe que nada foi deitado fora.

    Não posso assegurar que esta história seja totalmente verdadeira. Sabemos que o nosso povo é satírico e que de um pequeno traço pinta um quadro em que cada contador acrescentou um pormenor.

    Por: Nuno Afonso

     

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