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    Arquivo: Edição de 30-09-2009

    SECÇÃO: Crónicas


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    Um drama em três actos e um epílogo – 3º acto

    Roubar a honra, matar os sonhos, trair a amizade

    Demorámos, aproximadamente, três quartos de hora a entrar em Muros Baixos. Imaginem os leitores a que horas a tia Paixão devia ter-se levantado para estar na Senhora da Serra antes das seis daquela manhã. É certo que existem atalhos, mesmo assim, calculo que teria gasto cerca de três a quatro horas para fazer o caminho em passo que a raiva tornava mais célere.

    O tio Dinis, que emigrara para França dois anos antes e viera de vacanças em meados de Agosto, devia estar muitíssimo preocupado com a ausência da mulher que não lhe dera conta da sua intenção e saíra pela calada da noite, depois de horas de insónia, deixando-o em luta com os seus pesadelos. Entendera que era melhor não lhe dizer nada, porque tinha decidido ajustar contas com o causador da infelicidade da sua filha, responsável pela dor e vergonha da família e receava que o marido, mais calmo, tentasse dissuadi-la.

    Durante a viagem, não falámos do assunto que ocupava as nossas mentes. O Álvaro conhecia bem a vida da aldeia porque, desde muito novo, cuidava dos animais de trabalho, tinha clientes em dezenas de povoações do concelho. Fomos conversando sobre as tarefas agrícolas (as colheitas de cereais e de batata recém-terminadas, as vindimas que estavam à porta, o estado de desenvolvimento da azeitona) e sobre o tempo que era sempre uma incógnita e trazia em permanente sobressalto a vida dos lavradores. Falou-se de pessoas e de sua vidas, de casos passados e esperanças de futuro, tema que arrefeceu um tanto o ambiente desenvolto da conversa, porque a tia Paixão pensou que, em breve, também a sua família seria pasto da maledicência do povo e que a honra da sua filha ficaria mais suja que água de lavadouro público, para o resto da sua vida.

    Quando chegámos, havia uma pequena multidão que comentava o desaparecimento da tia Paixão e, ao verem-na descer do carro, acorreram para saber o que tinha acontecido.

    – Nada, não aconteceu nada, fiquem descansados. Fui à Senhora da Serra pagar uma promessa. Só me lembrei quando já nos tínhamos deitado e não quis acordar o meu marido. O senhor Álvaro e a Dª Alice fizeram o favor de me trazer. Desculpem pelo cuidado que lhes dei, fico muito agradecida a todos.

    A explicação não convenceu, mas cada qual sabia da sua vida, a mulher estava bem, o tempo corria de feição e havia muito trabalho à espera. O tio Castedo aproveitou a presença do senhor Álvaro para lhe mostrar uma vitela doente, o tio Dinis, agora mais tranquilo, acompanhou-os. Nós recolhemos a casa da tia Paixão para conversarmos à vontade.

    – Então a sua filha lembrou-se de ir para Angola assim do pé para a mão? – perguntei eu a retomar o fio à meada.

    – Para nós foi uma surpresa, não tenha dúvida. A senhora veja lá: trabalhava perto de casa, gostava de ensinar, tinha o seu ordenado certo ao fim do mês, chovesse ou fizesse sol. Na altura, não compreendemos e tentámos fazê-la mudar de ideia. Ao contrário do que era costume, ela teimou e não admitiu que a contrariássemos. Ficámos a saber que o padre estava do seu lado. Cada vez ia mais a casa dele e agora sei que não era só para tratarem de assuntos da igreja. Enquanto os papéis corriam, um belo dia, ela fez-nos saber que um rapaz, que vivia em Angola, lhe tinha escrito a pedir namoro. “Tu já o conheces?” – perguntei-lhe. Disse-me que não. “E ele conhece--te?” – “Escrevi-lhe e mandei uma fotografia junto com a carta”. Achámos tudo aquilo muito esquisito e eu recomendei-lhe que tivesse cuidado, mas os jovens de hoje não são como os do nosso tempo, julgam que sabem tudo. Por outro lado, ela fora sempre tão obediente que comecei a ficar nervosa, sem saber explicar porquê nem a mim própria. Talvez fosse o tal sexto sentido que nós temos…

    – E quem era o pretendente?

    – Ela dizia-nos que tinha negócios, que vivia muito bem e que desejava casar o mais depressa possível, constituir família. Tinha-lhe mandado uma fotografia e ela ficara entusiasmada. Pelas cartas que lhe escrevia, parecia tratar-se de um homem de bem, trabalhador e com boa situação económica.

    – Já se têm conhecido muitas situações dessas e que acabam por dar certo, tia Paixão.

    – É verdade. Antigamente, os noivos só se conheciam no dia do casamento, mas, agora, os tempos são outros. Voltando ao que eu estava a dizer, depois de meses de espera, chegou a autorização de embarque. Tinha que deslocar-se a Lisboa, sair daqui na véspera, dormir na capital e comparecer no cais por volta das dez horas. Fui com ela de comboio e a senhora não pode imaginar a minha angústia, os maus pressentimentos que me atormentaram na ida e ainda mais na volta. Chorei muito, também porque senti que ela não estava animada, que, lá no íntimo, alguma coisa a consumia. Escreveu-me ao chegar. Dizia que o noivo tinha ido recebê-la, junto com um casal amigo, em casa do qual iria ficar até ao casamento. Começariam a tratar dos papéis logo no dia seguinte. Parecia muito contente com o noivo e encantada com a cidade e com as pessoas. Mas não era natural, havia uma secura nas palavras…

    – E continuou a dar notícias?

    – Escreveu-me perto de dois meses depois de ter chegado a informar quando seria o casamento, que estava tudo tratado e a casa à espera de quem a fosse habitar. Entretanto essa data passou e, uns dias mais tarde, chegou uma carta do que seria meu genro a contar--me que, depois da cerimónia religiosa, a Lurdes teve uma indisposição, que a levou ao hospital e que ele, naturalmente, tinha ficado à espera do parecer do médico. Quando este voltou, trazia um grande sorriso nos lábios. Perguntou-lhe: “O senhor não sabe o que tem a sua esposa?” – “Desculpe, mas não faço a mínima ideia.” – “ Pois dou-lhe os meus parabéns: o senhor vai ser pai.” – O resto a senhora já pode calcular. Declarava-se muito zangado com a desonra que lhe tínhamos causado, nós e o seu amigo padre, dizia que a minha filha lhe tinha confessado tudo, que ela continuaria por sua conta até que o casamento fosse anulado e que, a seu tempo, ela me daria conta do seu regresso. Essa carta veio anteontem.

    A tia Paixão terminou a narrativa desfeita em lágrimas. Que podia eu dizer para a confortar?

    EPÍLOGO

    Os desmandos sexuais do clero católico são tão antigos como a existência do celibato a que se obrigam. Numa sociedade de matriz católica como a nossa, a par de alguns exemplos edificantes de sacerdotes que souberam honrar o compromisso assumido perante a Igreja, na pessoa do Bispo que o ordenou, e tiveram uma vida impoluta, muitos houve que, indiferentes ao sofrimento infligido às suas vítimas, familiares e descendentes, buscaram, egoisticamente, a satisfação dos seus instintos primários num quadro de desordem moral e social. O padre, que desempenhou a condenável acção aqui narrada, gabava-se das suas conquistas e declarava que havia de casar com uma mulher formada e rica o que, de facto, veio a acontecer, anos depois. O crime compensa? Continuo a entender que não.

    O acto reprovável, mas merecedor de atenuantes, de fazer justiça por suas mãos foi abafado pelo pároco do Santuário que, não apenas ocultou o facto à Guarda Republicana presente no recinto, como proibiu a padres e leigos que, de qualquer modo, contribuíssem para o divulgar. Se o Bispo da diocese teve conhecimento, escusou-se a tomar medidas.

    Nos anos sessenta do século volvido, as comunidades rurais do nordeste transmontano mantinham o apego aos rígidos códigos de conduta feminina de tempos bíblicos. A Lurdes recolheu ao lar materno pela calada da noite e ali se manteve reclusa até que pôde viajar para junto do pai em França. Era professora, mas estava-lhe interdito, por lei, o exercício dessas funções, uma vez que era mãe solteira.

    O menino ficou à guarda da avó na casa onde sua mãe nascera. Viam-se quando ela chegava, anualmente, para passar as suas férias. Lembro--me de o ter visto, certa vez, a brincar com outras crianças, nas ruas da aldeia. Teria sete ou oito anos, era magro e espigadote, muito mexido, cabelo loiro e anelado, olhos vivos. Todos o conheciam como “o filho do padre”. O miúdo parecia não ligar importância, mas, pouco a pouco, ia compreendendo a carga negativa que a designação comportava. Quem pode avaliar as consequências que isso representou na sua vida?

    Por: Nuno Afonso

     

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