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    Arquivo: Edição de 15-06-2009

    SECÇÃO: Crónicas


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    “Se lá do assento etéreo…”

    O GPS do automóvel foi de extraordinária eficácia, revelando aos meus olhos incrédulos nomes de ruas da minha aldeia que nunca foram outra coisa senão pequenos lugares ou bairros: o sítio d’ó Cancelo surgiu como Rua do Cancêlo, o bairro d’ó Cabo é agora a Rua do Cabo. Enfim, maneiras de corrigir, pervertendo, a genuinidade da linguagem rural! Atravessámos Alimonde sem paragem e dirigimo-nos à ermida do Santo Amaro onde a família havia de se reunir para celebrar o aniversário do meu irmão Alfredo.

    Parafraseando Camões, se lá do assento etéreo onde subiram, nossos avós e nossos pais puderam contemplar o convívio dos seus descendentes, nesse 23 de Maio de 2009, por certo ter-se-ão emocionado, com a pequena multidão que ali compareceu e com o ambiente de amizade que reinou entre todos. Além dos irmãos do aniversariante, respectivos consortes e alguns rebentos de primeira e de segunda geração, marcaram presença vários primos com seus filhos e netos. Considerando apenas os familiares em primeiro grau com os próprios agregados, constituímos já uma tribo bem numerosa não já como as estrelas do céu ou as areias do mar, mas bastante significativa numa época de tão dramática recessão demográfica.

    A ideia de reunir todos os membros da família Afonso nasceu em 1996, aquando da visita que, na companhia da minha esposa, efectuei ao ramo da nossa árvore genealógica que vive no Brasil, inspirado nas reuniões periódicas que lá costumavam realizar ora numa ora noutra das cidades onde cada núcleo havia lançado raízes.

    Transmiti a ideia, não só aos meus irmãos como a alguns primos. Desde o início, tive consciência das dificuldades que tal empresa acarretava e compreendi as objecções que alguns apresentaram. À semelhança da pequena brasa que, por muito tempo, permanece viva sob a cinza da lareira, assim ficou adormecida a ideia da magna reunião imaginada. O encontro agora realizado foi o que mais se aproximou do antigo sonho, ainda que não estivesse presente no espírito de quem o preparou, suponho.

    Não obstante os esparsos pingos de chuva que começavam a cair dum céu cinza escuro, tive a sensação de retorno a um mítico paraíso perdido. Ante meus olhos surgiu uma paisagem com diversas cambiantes de verde, aqui e além pinceladas de castanho da terra lavrada ou do alvadio pedregoso do caminho e à memória acudiu-me um nunca findar de gratas recordações de tempos que, irreversivelmente, pereceram.

    Demorei o olhar na capelinha do Santo Amaro, antecedida da casa que deverá ter sido erigida em tempos muito recuados, talvez em simultâneo com o pequeno templo, para residência do mordomo. Durante a minha infância e juventude, foi lar do tio Manuel d’Além e ali nasceram e cresceram os seus filhos, apartados do convívio com as gentes da aldeia, e que fugiam à aproximação de outras crianças. O que agora via deixou-me maravilhado: a casa está a ser restaurada, exteriormente já não parece a mesma com telhado novo e paredes compostas e pintadas; a capela encontra-se também restaurada, foram-lhe retiradas as imagens antigas, inclusive a do padroeiro, por precaução, que a arte sacra é alvo apetecido da ladroagem. Serão recolocadas sempre que haja celebrações eucarísticas que o justifiquem. Importante é reconhecer o enorme esforço de outro Alfredo, primo por afinidade e actual mordomo, residente na aldeia, que ali tem empregado inúmeros dias de trabalho gratuito e toda a dedicação do mundo na consecução do que, um dia, planeou. Os rendimentos obtidos pelo aluguer da cortinha adjacente e pelas ofertas dos fiéis ficam muito aquém do que ali tem sido realizado.

    A poucos metros para o lado esquerdo, ficam os lameiros que eu conheci na infância e já na idade adulta. Um deles pertenceu à nossa família. Vezes sem conta, guardei a cria naquele relvado; em dia de festa religiosa, com faixa da cruzada a tiracolo, almoçámos sobre a erva, em família, após as celebrações litúrgicas na capelinha e, no adro, o registo fotográfico de um numeroso grupo de crianças da freguesia, amalgamadas para caberem na película, ladeadas pelas suas catequistas e pelo pároco de então; foi também ali que, já homem e aproveitando a paz e o isolamento do lugar, li a resposta da que hoje é minha esposa ao pedido de namoro que lhe enviara tempos antes, igualmente por escrito. A propriedade era atravessada por um curso de água, que descia do sopé da serra, margeado de amieiros e de choupos, onde se desenvolviam variadas plantas aquáticas, paraíso de insectos de toda a sorte. No Verão, quase secava, formavam-se pequenas poças e, um pouco adiante, deixava de se ouvir o murmúrio deslizante da água, mas os juncos continuavam a assinalar o seu traçado a caminho do rio Carrazedinho alguns quilómetros para sul.

    Demorei-me a contemplar a sequência de lameiros em suave inclinação ascendente, o antigo caminho que lhes dava acesso e os separava de pequenos chãos onde, pela primeira vez, observei os arbustos donde pendiam as cabaças que, depois de secas e esvaziadas de sementes e fibras, serviam de recipiente ao vinho que os lavradores levavam consigo para o rude trabalho diário e acompanhava a bucha de moreno centeio que lhes retemperava as forças.

    À minha frente, despertou-me a atenção uma pequena ponte, recentemente construída, no lugar onde, antes, existia um velho pontão de madeira sobre o curso de água de que acima falei. Descendo pelo carreiro, que do caminho atalhava para a ermida, cruzavam ali o ribeirinho na festa do Santo, a 15 de Janeiro, e nas mais diversas oportunidades, o que lhes possibilitava o desfrute da admirável paisagem do lugar. Mais acima e em linha recta, impressionou-me o porte hierático dos castanheiros ancestrais de abundante folhagem verde-escura até onde o terreno fértil dava lugar ao solo árido e pedregoso, habitado por um cerrado carrascal que descia e alargava, pela vertente oposta, em forma de concha, na direcção do rio.

    Para além da capela, estendem-se os terrenos arados do Vinhago, cujo nome provém de antigas plantações de vinha, actualmente reduzidas a pequenas faixas que resistem à falta de braços que delas possam tirar bom proveito. Atrás de mim, há fragas e uma vegetação rasteira onde predominam as estevas com as suas flores quase místicas sanguíneo-escuras em que os camponeses vêem as cinco chagas de Cristo e que desprendem um forte perfume resinoso.

    Paisagens como esta confortam a alma e asseveram-nos que há muitos pedaços de paraíso em contraponto às trepidantes atracções da vida citadina, enganoso ardil em que dissipamos os nossos dias.

    Por: Nuno Afonso

     

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