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Edição de 31-03-2024
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    Arquivo: Edição de 30-03-2009

    SECÇÃO: Crónicas


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    Tempo de aventura

    Quando o tempo cumpria, religiosamente, as suas obrigações, fazia questão de mandar um aviso. Aí por meados de Março, quem quer que abrisse a primeira janela, pela manhã, sentia-se envolvido numa festa de novos sons e exclamava:

    – Chegou a Primavera! Olhem as andorinhas!

    A temperatura tornava-se mais amena, os primeiros raios de sol douravam o alto das colinas, uma poalha rarefeita preenchia a atmosfera que estremecia com um chilrear agudo e álacre, após vários meses ausente dos ouvidos humanos. Às primeiras horas do dia, no largo d’ à Bica aquelas damas aladas de capa negra e peitilho branco alteavam seu voo e logo desciam, num voltear constante, soltando seus emotivos e contagiantes vibratos de saudação, dirigiam-se aos ninhos alinhados ou sobrepostos ao longo dos beirais das casas, identificavam-nos e logo procediam às reparações necessárias a um novo ciclo de vida. As que acasalavam pela primeira vez buscavam o próprio espaço e, sem perda de tempo, lançavam-se ao trabalho, num frenético vaivém, transportando no bico porções de lama que, em breve, ganhavam forma de causar inveja aos mais exímios construtores humanos.

    O local privilegiado pelas andorinhas era a antiga casa paroquial, mais tarde cedida ao Estado para servir de escola primária, hoje utilizada como Casa do Povo. Erigida bem no centro da povoação, por ali passavam os lavradores, a pé ou nos seus carros de bois, homens e animais a mitigarem a sede no fontanário, mulheres que vinham encher os seus cântaros com água para consumo caseiro ou faziam a higiene da roupa no lavadouro, alimentado pelos efluentes do chafariz, além do caminho, crianças que utilizavam aquele espaço para as suas brincadeiras, no intervalo escolar. Com tanta água, terra e palhuça das cortinhas adjacentes, as andorinhas dispunham de tudo quanto era necessário aos seus objectivos: material de construção e água.

    Outras aves iam chegando e fazendo seus ninhos em sítios escondidos, pelos campos e ribeiras, em juncais, silvedos ou ramos de árvores: pintassilgos e pintarroxos, carriças e lavandiscas, tordos e tralhões, rouxinóis, melros, rolas e perdizes, centenas de espécies de variegadas cores e cantos diferenciados, todos participando na orquestra em que a natureza se transformava. Se a azáfama da passarada era intensa, a dos camponeses não lhe ficava atrás: lavravam e estrumavam as terras que as águas do Inverno haviam penetrado, semeavam milho, feijão, cevada e serôdio, plantavam batatas, couves e demais hortícolas, assim pondo a mesa a todos os seres vivos. A natureza ganhava crescente animação e colorido com a florescência das plantas silvestres espalhadas pelos baldios e à margem dos caminhos.

    Depressa começava a aventura da garotada na procura dos ninhos. Conhecedores das características de cada espécie, os rapazes soltavam-se por prados e matas a espionar os movimentos dos pássaros adultos, tentando descobrir onde tinham construído as suas moradas e, em caso de êxito, enchiam o peito e soltavam um canto de vitória face aos concorrentes: “sei um ninho!” Era inevitável que o receptor desta informação perguntasse:”de quê?” ou “onde?” Os mais espertos respondiam a essas e a outras indagações de maneira vaga e, muitas vezes, trocavam as voltas ao questionador a fim de o despistar; só os ingénuos forneciam elementos que pudessem conduzir sem maiores dificuldades à localização do tesouro. Era um jogo, simples na aparência, mas que muito contribuía para a socialização da pequenada, apurando os reflexos mentais de cada um, ditando-lhes truques e ensinando-lhes imensas coisas para o reconhecimento de cada tipo de ave, seus hábitos e particularidades genéticas: tamanho, formas, cor da plumagem, modulação do gorjeio, lugar em que faz o ninho e qual o seu formato, materiais a que recorre para a construção, quantidade de ovos que põe, aspecto exterior do ovo, tempo de choco e de criação. O especialista deveria saber que não convém efectuar muitas visitas a um ninho sob pena de os progenitores “aborrecerem” (abandonarem o ninho e deslocarem-se para outro lugar), reiniciando o trabalho e mesmo a postura.

    Verão no horizonte, abria, informalmente a época da caça. Não havia que tirar curso nem licença para o efeito, bastava aprender a construir esparrelas e descobrir formigas de asa o isco preferido pela generalidade das aves. Uma haste de vimeiro, flexível, unida pelos extremos com um dispositivo que prendia a ave pelo pescoço quando, atraída pelo bater de asas, tentava comer a formiga. Eram também conhecidas como “pescoceiras”, pela óbvia razão de que prendiam as vítimas pelo pescoço, ou por ratoeiras, designação mais abrangente derivada da função original que consistia em caçar ratos. As formigas de asa não eram muito abundantes, mas facilmente se descobriam pelos orifícios que davam acesso à sua comunidade. Era, também preciso, contar com o tempo para que a captura fosse bem sucedida. Os miúdos obrigavam-nas a sair introduzindo, nesses orifícios, uma palha e guardavam-nas em caixas de fósforos vazias dotando-as de pequenos respiradouros para garantir a sobrevivência dos pequenos animais.

    Os homens mais idosos diziam que, no seu tempo, qualquer garoto chegava a casa com dezenas de pássaros atados à cintura imitando os verdadeiros caçadores.

    «Pelo São Mateus, rapaz, deixa os pássaros que não são teus.» Este provérbio traduzia o fim do período em que os rapazes se divertiam a valer numa aventura saudável e enquadrada pela Natureza. O dia atribuído ao Santo Evangelista era coincidente com o início do Outono quando as aves migradoras buscavam climas mais temperados. Por aqui ficava apenas o pardal tão chegado ao homem como o cão, mas bastante mais incómodo e daninho.

    A introdução de produtos químicos na agricultura e o avanço dos níveis de poluição do ar e das águas têm sido os factores responsáveis pelo quase desaparecimento desta fauna e consequente perda do fascínio que para muitos representou este período da sua vida.

    Por: Nuno Afonso

     

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