Subscrever RSS Subscrever RSS
Edição de 31-03-2024
  • Edição Actual
  • Jornal Online

    Arquivo: Edição de 15-06-2008

    SECÇÃO: Crónicas


    foto

    A Justiça

    Num tempo em que as sociedades se tornam mais complexas, entre nós quase todos pensam e dizem à boca pequena o que, em público, não têm coragem de afirmar: a Justiça que temos não é credível nem aceitável pelo que, muitos preferem dedicar-se a actividades criminosas em vez de trilharem o caminho da observância das leis que nos governam e dos bons princípios que devem orientar-nos e que fizeram a grandeza do que hoje somos.

    Diz-se que “a Justiça é cega e…vê”. Infelizmente vê muito mal ou vê o que não deve. A interpretação que é costume dar ao símbolo da mulher de olhos vendados, que sustenta uma balança de pratos em perfeito equilíbrio, está muito longe de ser verdadeira. Mais verdadeiro seria se cada um dos olhos tivesse orientação diferente: um meigo para o lado dos poderosos corruptos e ambiciosos e o outro duro para o lado dos menos favorecidos, mas resignados e dóceis porque não têm outro remédio.

    É preciso que andemos cegos, nós, os cidadãos, para não enxergarmos o que é evidente: há uma justiça para os ricos e outra bem diferente para os pobres, ainda que a legislação aplicável seja a mesma para todos. E, nesta falácia revestida de azul celeste, têm-nos embalado desde que a igualdade de direitos foi proclamada.

    “Ninguém enriquece a quebrar cabos de enxadão” – dizem as pessoas da minha aldeia – o que, em linguagem chã, remete para a injusta apropriação da riqueza por alguns. Fácil é constatar que na base de muitas fortunas, sobretudo das que se constroem rapidamente, estão procedimentos ilícitos.

    Se as leis são iguais para todos, o mesmo não se poderá dizer da sua aplicação. Os ricos prevaricam, mas raramente se vêem a braços com o rigor que as leis determinam e, quando a excepção ocorre, os processos em que são arguidos dormem um sono tranquilo em qualquer gaveta como a lebre da fábula ou seguem ao ritmo do caracol, em qualquer dos casos a caminho da prescrição. Para que tal aconteça, os ricos têm a possibilidade de pagar altos honorários a causídicos de grande estirpe, conhecedores de todos os enredos e ardis forenses, das malhas largas ou pontas soltas da Lei, capazes de imprimir o ritmo adequado para que os seus clientes saiam galhardamente das mais comprometedoras situações jurídicas; os cidadãos de mais baixos rendimentos outro remédio não têm senão recorrer a defensores de segunda ou terceira linha com pouca experiência e reduzido espaço de manobra no foro, quantas vezes nomeados oficiosamente por absoluta carência dos constituintes.

    Se o rico for condenado, ainda assim dispõe de privilégios na prisão e, não tarda, está fora, além de não ser grandemente prejudicado na sua reputação, porque o consideram esperto, capaz de se sobrepor à Lei; o pobre junta-se a outros de nível idêntico em espaços onde a dignidade não cabe, mas onde mora a degradação com o seu cortejo de vícios e desrespeito pela sacralidade inata do ser humano. Pior ainda é a maneira como o recebem no exterior, o estigma que transporta consigo e lhe vai fechando todas as portas.

    Neste mundo globalizado, vai crescendo a violência, que as desigualdades favorecem, e, simultaneamente, as penas vão sendo reduzidas. A legislação é de tal modo complacente que estimula o crime. Não se compreende que o(s) autor(es) de assassínio com requintes de perversidade seja(m) punido(s) com o máximo de vinte e cinco anos de prisão passíveis de ser aligeirados por atenuantes sugeridas pelos seus advogados. Depois há a liberdade condicional, justificada e mesmo antecipada se for admitido o bom comportamento do(s) recluso(s). Em reportagem, há pouco tempo apresentada num canal de televisão, um tipo mascarado e com a voz distorcida apresentou-se como se fora um profissional de carjacking, o crime “da moda” executado sempre com enorme violência, afirmando viver dessa actividade. Como é possível que uma sociedade admita, sequer por hipótese, que um “trabalho” desse jaez ocupe determinado número de pessoas a par de profissões dignas e úteis a essa mesma sociedade? Se a exercem, é porque o que auferem compensa o risco de virem a sofrer pena no caso de uma condenação.

    Segredo…de quê? De polichinelo, obviamente. Aquilo a que é habitual darem esse nome é um belíssimo argumento quando os advogados não desejam responder a perguntas incómodas. De resto, a bisbilhotice proverbial da nossa gente encontra vasto campo de manobra nos caminhos e nos atalhos que os processos trilham até que cheguem a julgamento. O que mais dói é a insensibilidade patente na forma como se enlameia o bom nome das pessoas. Ainda que venham a ser ilibadas, jamais se libertarão da mancha que o conspurcou. “ Se foi incriminado é porque alguma coisa fez que o justificasse – pensarão os tendenciosos – onde há fumo, há fogo”. Todos sabemos que tal raciocínio é falso. Esse é um crime que não tem redenção.

    Por: Nuno Afonso

     

    Outras Notícias

     

    este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu
    © 2005 A Voz de Ermesinde - Produzido por ardina.com, um produto da Dom Digital.
    Comentários sobre o site: [email protected].