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    Arquivo: Edição de 15-02-2008

    SECÇÃO: Opinião


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    Democracia gangrenada

    Das diversas designações que o vocábulo gangrena pode assumir, tomamos aqui a que a define como processo que causa ou sofre degeneração, degradação, destruição progressiva. Como se pode recolher em qualquer enciclopédia, são múltiplas as causas susceptíveis de causar processos de gangrena: inflamação violenta, queimadura, contusão, congelação, etc., e não menos os sentidos figurados em que o termo pode ser usado. Camilo, em “Horas de Paz”, editado em 1865, citado na Grande Enciclopédia Portuguesa Brasileira, utilizou-o para salientar que «os velhos costumes que as leis novas não destruíram, corrompe-os a imoralidade, e melhor fora que as leis os destruíssem dum golpe, para que a corrupção os não gangrenasse lentamente». São passados mais de cento e quarenta anos, mas o desalento do escritor do “Amor de Perdição” continua actual.

    Tal como então, também hoje não falta quem escreva sobre a degradação dos princípios, dos costumes, da ética e das instituições, havendo quem aconselhe (como faz o Prof. Rui Teixeira, no “Jornal de Notícias” do passado dia onze do corrente) que se recorde a primeira República, enfatizando que o sistema dos últimos 30 anos está no fim. Caiu por dentro como caem todos, diz ele. Já antes o director do Observatório de Segurança, tenente--general Garcia Leandro, testemunhava no semanário “Expresso” do dia dois deste mês, sentir «a revolta crescente daqueles que comigo [com ele] contactam, eu próprio começo a sentir a minha capacidade de resistência psicológica a tanta desvergonha…enfraquecendo todos os dias… já fui convidado a encabeçar um movimento de indignação contra este estado de coisas e tenho resistido…É óbvio que não será pela acção militar que tal acontecerá… tem de ser o próprio sistema político e social a tomar as medidas correctivas para diminuir os crescentes focos de indignação e revolta», receita que, quanto a nós, jamais se experimentará.

    O sistema político democrático assenta na existência de partidos, instituições que precisam de dinheiro, muito dinheiro, para sobreviverem, recursos que vão muito para além dos quantitativos provindos da generosidade dos militantes. E, sendo os partidos quem selecciona os candidatos a deputados e outros actores da governaçãoo, rapidamente se conclui que, esperar que se regenerem é algo que se deverá fazer sentado, com a esperança de que os deuses unjam com o óleo da vivência eterna neste mundo de mortais, os que em tal milagre acreditem.

    Nos primórdios da I e da III Repúblicas, foram muitos os cidadãos que abraçaram a coisa pública com entusiasmo, dedicação, altruísmo, sincero desejo de servir o Estado. Infelizmente, a história da I República reescreve-se actualmente com pinceladas bem mais negras que as utilizadas no início do século XX. Os competentes e impolutos políticos que surgiram a seguir à Revolução dos Cravos ou morreram ou se afastaram do vespeiro em que a democracia se transformou. Hoje, o que vemos, sempre com as necessárias (ainda que poucas) excepções, são “arrivistas” da política que, propondo-se servi-la, dela se aproveitam com total despudor, evidenciando níveis de vida e sinais de riqueza que antes de entrarem para a política não lhes eram conhecidos.

    À degradação da ética republicana somam-se exemplos do que será a actividade por detrás dos biombos da política: são os despachos que subtraem ao património público edifícios caros e emblemáticos; os muitos milhares de euros de origem estranha, contabilizados em contas partidárias, contemporâneos de autorizações de controversos projectos urbanísticos; nublosas permutas de terrenos e de autorizações edificativas, obras públicas com sistemáticas derrapagens financeiras; uso e abuso de solicitação de relatórios técnicos, pareceres e auditorias externas, com o que anualmente se consomem centenas de milhões de euros do erário público, beneficiando, ao que parece, um número restrito de entidades; estatuto remuneratório de políticos que envergonha qualquer cidadão minimamente probo, de que a “teia” urdida pelos deputados para aumentarem os seus rendimentos é imaginação que não passaria pela cabeça do cidadão mais avisado antes de ler o que a comunicação social publicou há poucos dias.

    Em contraponto com este “forrobodó” de recursos exauridos pela classe política, e em nome de rigor orçamental, reduzem-se pensões, introduzem-se novas taxas moderadoras e aumenta-se as existentes, encerram-se escolas primárias, urgências hospitalares, maternidades, serviços nocturnos nos centros de saúde, esquadras policiais, tribunais, cursos universitários, etc. Relativamente ao ensino superior público, é paradigmático que o governo nos últimos anos proceda a cortes orçamentais no financiamento às universidades, sem que se conheça procedimento de igual intensidade e persistência para os serviços centrais do Estado, designadamente para a Assembleia da República..

    A somar a esta profusão de abcessos do nosso Estado de direito, os astutos deputados produzem legislação impondo procedimentos praticamente impossíveis de serem observados pela investigação sem cometer erros, sendo pura ingenuidade acreditar que não se apercebam que uma das consequências será que os processos feneçam, alegadamente com base em provas obtidas de forma não legal, numa das fases: não pronúncia de arguidos, absolvições depois de inúmeras sessões com base na alegação de preterição de formalidades na investigação ou, no limite, pela via da prescrição. Presos por crimes de corrupção, compadrio, ou tráfico de influências é que não se conhece, mau grado a quantidade de situações veiculadas na comunicação social. E, enquanto não introduzirem na legislação criminal a inversão do ónus da prova para situações de manifesta exibição de bens de fortuna de origem desconhecida (uma das propostas do Engº. Cravinho), estarão a dizer aos autores de crimes de colarinho branco que podem continuar a dormir descansados que nada lhes acontecerá, mesmo quando, em situações de divórcio, o cônjuge reclame centenas de milhares de euros para assinar a separação de jure, sustentando o pedido no elevado montante de património que entrou na esfera do casal após o consorte ter abraçado a “mal remunerada” actividade política.

    Como corolário da necrose democrática em curso, temos o deficiente funcionamento da justiça, pilar fundamental para a existência dum Estado de direito, que por isso deveria ser prestigiada e dotada de meios para produzir decisões atempadas, e os ataques à polícia de investigação que de “bestial”, reconhecida e condecorada pelo Estado espanhol, passou a “besta” na apreciação de quem a dirige. Perguntar-se-á: como sair deste processo que paulatinamente vai gangrenando a nossa jovem democracia? Não sabemos. Mas não temos dúvidas de que a excisão é inevitável. Onde? Certamente que não será em Portugal, por sermos pequenos para enfrentar os ataques comunitários, ameaça que não inibirá alemães, franceses, italianos ou espanhóis, em cujos países a “operação” acabará por se tornar inevitável, forçada pela degradação das instituições, autismo dos políticos e sufoco das populações

    Por: A. Alvaro de Sousa

     

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