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    Arquivo: Edição de 30-07-2007

    SECÇÃO: Crónicas


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    O Chico

    Teria o Chico seis anos e já se tornara um quebra-cabeças para a legião de mulheres que cirandava lá por casa.

    O garoto era esperto, azougado, repontão. Irrompia porta adentro como se fora uma rabanada de vento e exigia que o atendessem de imediato, que a brincadeira não podia esperar; respingava a provocar as mulheres sempre afadigadas na cozedura do pão, a preparar as refeições da família e dos trabalhadores rurais, a cuidar dos animais domésticos. Muitas vezes chamava-lhes nomes à espera de as ver zangadas ou para desopilar quando a jarolda não lhe tinha corrido de feição.

    As vítimas preferidas dos seus motejos e “injúrias” eram a Felicíssima e a irmã Ana, conhecidas pela alcunha de Salonas. A primeira, há muito ao serviço da casa, reparou na entrada do pequeno, estendeu a toalha de linho sobre a rústica mesa de castanho velho e pôs-lhe à frente uma tigela de sopa de legumes. Nem perdeu tempo a perguntar-lhe porque vinha almoçar fora de horas, para não ouvir uma das suas respostas tortas. O miúdo comeu duas colheradas e, pronunciando mal o erre, disparou:

    – Ah Salonas reles, que mal fizestes o caldo!

    – Não fomos nós, foi a tua mãe.

    – Ah! Por isso é que ele sabe tão bem! – retrucou, a demonstrar precocidade na arte de inverter a tendência do jogo a seu favor.

    Já então tinha vencido o ciclo da mama. É que, ao invés do que sucedia tradicionalmente, teve um dilatado período de aleitação e, quando todos pensavam que o assunto estaria encerrado, nasceu a irmã Antónia e ei-lo a disputar-lhe o leite materno. Indiferente ao espanto dos adultos, que achavam o caso digno de “ir pr’ó jornal”, sempre que a mãe descobria um dos peitos para amamentar a filha, o Chico trepava-lhe para o colo e toca de chuchar também, no lado oposto. O caso foi, durante muito tempo, motivo de divertimento a pontos de, um dia, o tio Manuel Simão, que tinha um modo de falar cadenciado, martelando as sílabas, lhe ter dito com a malícia de quem, adrede, pisa o rabo a um gato:

    – Ó Chico, inda mamas?

    A agressividade manifestou-se rápida e incisiva:

    – Olhe, sabe que mais? Vá barda…m…

    Não completou a frase, porque os pais sempre lhe ensinaram que era feio dizer asneiras, mas desatou a fugir até ao palheiro, fechou por dentro o largo portal e atirou-se para cima do feno à espera que lhe passasse a raiva.

    Entre um pai austero que distribuía tarefas que sabia adequadas à idade dos filhos, mas pouco indulgente até quando eles se queixavam de alguma limitação física, rigoroso com a educação religiosa e os princípios morais da família e uma mãe alvo de mexericos das más-línguas, que as outras crianças não se coibiam de utilizar sempre que entre elas surgiam desavenças, o Chico, aparentemente, ultrapassou sem traumas graves as dificuldades inerentes ao crescimento. Mantinha a vivacidade e o atrevimento habituais, indiferente aos perigos que dos excessos podiam resultar para a sua integridade corporal. Montado na égua, em pêlo, atravessava a aldeia num galope furioso atrás da cria que deixava seguir muito à frente. À sua passagem, as mulheres deitavam as mãos à cabeça na perspectiva de o verem estatelar-se no caminho pedregoso e lamacento:

    – Ai, Jesus, que o Chiquinho mata-se!

    Felizmente nada aconteceu nem mesmo ao correr repetidas vezes sobre as guardas da ponte, quando tangia os animais para o lameiro situado do outro lado do rio. Ali, eram menos visíveis as suas acrobacias, mas havia sempre quem, de longe, observasse a diabrura e fosse contar ao senhor Alípio ou à senhora Gracinda que o Chico podia trazer-lhes um grande desgosto, se não fosse repreendido. É claro que as admoestações dos pais caíam quase sempre em saco roto.

    As circunstâncias mudam ao longo da vida e todos os seres, humanos ou não, sofrem modificações que essas circunstâncias lhes vão impondo e tentam adaptar-se-lhes. Há, no entanto, características que connosco nasceram e influenciam os nossos actos enquanto vivermos. Frequentemente, incorremos em erro ao falar de virtudes e defeitos e ao catalogar as pessoas segundo os rótulos que para elas usamos. Atrevo-me, todavia, a considerar que o Chico era impulsivo e carente de afectos, queria que o amassem como ele amava os outros o que nem sempre acontecia. Tomava decisões, com alguma frequência, precipitadas e amuava se o contrariavam, levando isso à conta de menos consideração até quando se tratava de familiares e amigos de cujos sentimentos não duvidava. O que valia era que esses amuos não duravam mais do que uma trovoada de Maio que ameaça, às vezes causa problemas, mas logo se desvanece abrindo-se em sorrisos.

    Por: Nuno Afonso

     

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