Subscrever RSS Subscrever RSS
Edição de 31-03-2024
  • Edição Actual
  • Jornal Online

    Arquivo: Edição de 30-04-2007

    SECÇÃO: Crónicas


    foto

    Os sonhos podem esperar

    A Matilde nasceu à primeira hora duma borrascosa madrugada de Abril. Na simbologia de muitos povos, a presença da chuva augura felicidade. Esteve para chamar-se Vitória pela heróica irrupção neste mundo de rotinas consentidas e desmazelos irresponsáveis, logrando assim o direito a uma vida plena, não necessariamente isenta de dificuldades. Entre numerosas hipóteses que se aventaram, prevaleceu Matilde, um nome de ressonâncias históricas e evocações familiares mais ou menos próximas.

    No segundo aniversário da Matilde, a mãe e a avó materna prepararam, com amor, uma festa para a qual convidaram familiares e amigos bem como as crianças, meninas e rapazes, da vizinhança. Além das comidas e bebidas por hábito servidas em ocasiões que tais, ampliaram a oferta e introduziram novidades: havia canapés variados, gelatinas de diversos sabores, doces e gelados, tudo muito apelativo e disposto com esmero. Num recanto da sala, preparou-se o espaço dos mais pequenos, afinal, os donos da festa: pufs, jogos, brinquedos e, ao fundo, um cenário em que a avó pintou animais personificados, bosques inundados de sol, nuvens a vogar num céu de azul intenso. Feito para criar ambiente aos mais pequenos, foram, no entanto, os adultos que mais elogiaram o "quadro":

    – Está muito lindo! Quem fez esta maravilha?

    Outros, mais práticos, tinham leitura diversa:

    – Em quanto ficou a decoração?

    A avó, modestamente, confessou que fora ela a autora do que julgavam ser "uma maravilha" e que deveria ter custado"os olhos da cara".

    – Não sabia que tínhamos uma artista na família! – mimoseou-a uma prima, reconhecendo, explicitamente, ter sido privada desse talento.

    No jardim, as meninas brincavam com a aniversariante enquanto não era chegada a hora de se abeirarem da mesa, posta no andar superior. Os rapazes, em clara minoria, entretinham-se a dar pontapés num grande balão azul, muito leve, mais adequado às feminis características da Matilde do que à pretensa força dos projectos de homem que ainda eram, incapazes de o adaptarem a outro tipo de diversão. Os adultos aproveitavam este ocasional encontro para trocarem informações acerca dos respectivos projectos de vida, para exprimirem os seus pontos de vista sobre a realidade nacional e internacional, enquanto se dedicavam aos aperitivos, talvez a parte mais agradável de qualquer convívio, precisamente porque é o prenúncio da festa. Dir-se-ia que o Verão chegara mais cedo, porque o sol aquecia e uma brisa muito ligeira parecia adrede a ele associada para dar aos seres humanos conforto e animação. De quando em vez, chegava alguém, todos se cumprimentavam e abriam espaços para os recém-vindos.

    Ilustração RUI LAIGINHA
    Ilustração RUI LAIGINHA
    Já os convivas se encontravam à volta da mesa e eis que a campainha retiniu. A avó encaminhou-se para o portão. Diante de si estava um rapaz, um pouco mais encorpado do que os restantes e que ela não reconheceu. Os miúdos, que já se encontravam na festa, também desceram, movidos pela natural curiosidade, e, ao reconhecerem o amigo, foram ao seu encontro:

    – Eu sou o Samuel, neto da Dª Dulce, e queria dar um recado ao Pedro… – adiantou o rapaz com timidez.

    – Entra! – convidou a dona da casa. – Só não te convidei antes, porque já és mais crescido…

    – Mas eu até sou mais novo do que o Pedro – explicou ele, olhando para o maior dos rapazes.

    Receoso de perder a companhia do amigo, o Pedro incentivou-o com um argumento que julgou em absoluto convincente:

    – Entra, Samuel, há batatas fritas.

    – Mas eu não fui convidado – insistiu o outro. Só queria saber quando vens, para brincarmos.

    – Desculpa o meu engano, mas faço gosto em que venhas também à festinha da Matilde. – repetiu a avó, abrindo o portão. – Tu estás muito crescido! Pensei que eras bem mais velho do que os teus amigos.

    O moço hesitou ainda, mas acabou por aceitar e foram, todos contentes, juntar-se ao resto da criançada. Entretiveram-se como puderam no meio de muitas meninas, mas tiveram a compensação de acompanhar, pela televisão, o jogo de futebol em que o Porto derrotou copiosamente o Vitória de Setúbal para o campeonato, vibrando com os melhores lances e tecendo comentários próprios de especialistas na matéria.

    Quando a partida acabou, já a festa esmorecia. Aos poucos, despediam-se os mais novos e logo os crescidos que moravam longe; em seguida eram os jovens que ainda tinham outro programa para essa noite; só bem tarde saíram os últimos. A família de todos se despediu e ninguém logrou convencer a Matilde de que era preciso descansar. Chorou abundantemente quando as suas amiguinhas Patrícia, Catarina e Fabiana se foram embora.

    – Não, chores, minha querida! Amanhã voltamos para brincar contigo! – dizia a Fabiana com ar de adulta precoce.

    Mas logo que elas se foram, a Matilde retomou a brincadeira e só o apagar das luzes foi capaz de lhe vencer o ânimo. Só os adultos encarecem os sonhos.

    Por: Nuno Afonso

     

    Outras Notícias

     

    este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu
    © 2005 A Voz de Ermesinde - Produzido por ardina.com, um produto da Dom Digital.
    Comentários sobre o site: [email protected].