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Edição de 31-03-2024
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    Arquivo: Edição de 31-01-2021

    SECÇÃO: Destaque


    ENTREVISTA COM A PADEIRA-MOR DA CONFRARIA DO PÃO, DA REGUEIFA E DO BISCOITO DE VALONGO

    O pão, a regueifa e o biscoito: mais do que um alimento um património que coloca o nome de Valongo nas bocas do Mundo

    A abertura da Oficina do Pão, da Regueifa e do Biscoito de Valongo foi pretexto para levarmos por diante uma conversa com a padeira mor da Confraria do Pão, da Regueifa e do Biscoito de Valongo. Neste diálogo, Rosa Maria Rocha deu-nos a conhecer não só um pouco do trabalho que vem sendo desenvolvido pela Confraria – que neste momento conta com 146 confrades – mas, de igual modo, guiou-nos numa viagem histórica por aquele que é indiscutivelmente um dos maiores patrimónios do nosso concelho.

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    A Voz de Ermesinde (AVE): Mais do que uma tradição, o pão de Valongo, onde se destaca a regueifa e o biscoito, pode ser encarado como património deste concelho. Concorda? Nesse sentido como é que hoje em dia é olhado e sobretudo tratado este património pelas nossas gentes, na opinião da Confraria?

    Rosa Maria Rocha (RMR): O pão, a regueifa e os biscoitos de Valongo são realmente uma tradição e, por isso, fazem parte do património material e imaterial de Valongo. As nossas gentes têm muito orgulho nesta tradição gastronómica e foi com enorme satisfação que viram a criação da Confraria. Lembro-me bem de, no primeiro ano de existência da Confraria, à saída da Capela da Nossa Senhora da Luz, no final da bênção do Pão de Santo António, uma senhora vir ter comigo e dizer-me “Obrigada por terem criado a Confraria do Pão. Vejo, todos os domingos de tarde, um programa na televisão em que aparecem confrarias e penso – porque é que Valongo não tem uma confraria? Finalmente temos uma, obrigada!”

    AVE: Porque é que Valongo assume desde “que há memória” um papel preponderante no fabrico de pão na região a toda a volta do Porto. Isto é, historicamente, a que se deve este “rótulo” de capital do pão e da regueifa?

    RMR: No passado como hoje, as cidades eram centros de atração para as gentes do campo que viam aí uma oportunidade de uma vida melhor. O Porto não fugia à regra. As padarias de então, assim como as casas, não tinham condições de segurança, pelo que eram frequentes os incêndios, que, muitas vezes, se propagavam para as casas vizinhas. Por tal facto, o Município do Porto procurou limitar a atividade de panificação, sujeitando a entrada de trigo na cidade a um imposto. Diferentemente, o trigo, quando desembarcado no porto de Gramido, em Gondomar, tinha benefícios fiscais, incluindo, até, a isenção de imposto.

    Valongo, até ao século XIX, foi, de facto, o principal fornecedor de pão da cidade do Porto, pois beneficiava da sua situação geográfica de proximidade e, principalmente, pelos inúmeros moinhos nas margens do rio Ferreira, que permitiam moer o trigo. Assim, em tempos mais idos, Valongo, ponto de passagem dos almocreves, vindos do interior transmontano, trazendo o bom trigo para a grande cidade, conseguia que esse trigo ficasse por cá, transformando-o em farinha e, com as suas magníficas águas, fazia o pão que ia vender à cidade. Posteriormente, com as limitações impostas à panificação na cidade do Porto, passou a ir buscar ao porto de Gramido, em Gondomar, o trigo que vinha por via fluvial ou marítima. Daí, trazia-o, em carros de bois, até os moinhos do rio Ferreira para ser transformado em farinha de elevada qualidade. Esta farinha era, depois, levada para as padarias do centro de Valongo, onde, através da maestria dos padeiros, da qualidade da água e da lenha usada na cozedura, era transformada num pão de excelente qualidade, muito apreciado no Porto, como pode ser constatado em inúmeros relatos que chegaram até aos nossos dias.

    No século XIX, numa conjuntura de lutas contra os franceses, seguidas das lutas liberais e, também, da revolução industrial e consequente utilização da moagem a vapor, Valongo começa a perder a importância no abastecimento da cidade do Porto, mas nunca deixa de o fazer, até aos nossos dias, devido à qualidade e fama dos seus produtos. Nessa altura, começa a desenvolver-se o fabrico dos biscoitos de Valongo, para satisfazer uma clientela com maior poder económico, com produtos de qualidade e com uma maior durabilidade.

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    AVE: A Confraria do Pão, da Regueifa e do Biscoito nasceu oficialmente, se não estamos em erro, em 2015. De lá para cá o que é que a Confraria tem feito no sentido de preservar e ao mesmo tempo dinamizar este património material e imaterial?

    RMR: A Confraria foi criada tendo em vista a defesa, preservação, valorização e divulgação dos produtos identificados no nosso nome e que são: o pão (em sentido lado, do qual destacamos) a regueifa (por ser mais conhecida) e os nossos famosos biscoitos. A escritura de constituição da Confraria foi assinada, no dia 4 de junho de 2015, por 57 valonguenses que se quiseram associar a esta iniciativa, por ver nela a resposta a uma necessidade, há muito sentida na nossa terra. Um ano depois, fizemos o nosso I Capítulo, a festa maior de uma confraria, onde foram entronizados 117 Confrades. Daí para cá temos vindo a crescer. Temos, também, cerca de 20 Confrades Honorários, entre os quais dois famosos Chefs de Cozinha, uma escola secundária, uma escola superior de hotelaria, homens e mulheres das ciências, das letras, do mundo empresarial e da comunicação social, um município francês e, “the las but not the least”, o nosso município e as nossas freguesias.

    Relativamente ao trabalho desenvolvido para a prossecução do nosso objeto, destaco: o Capítulo anual; a colaboração com a Câmara Municipal e com a Federação Portuguesa das Confrarias Gastronómicas, em tudo o que nos é solicitado; dois Concursos anuais - o da Melhor Sopa Seca, em Valongo, e o da Melhor Rabanada, em Ermesinde, estando estes eventos associados a um fim de solidariedade; os “Pequenos Almoços à moda antiga”, para alunos do 4.º ano de escolaridade, em que um Confrade padeiro vai às escolas aderentes fazer um workshop sobre como se fabrica o pão, fazendo-o desde o pegar na farinha até o retirar do forno - no final, os alunos tomam um pequeno-almoço com o pão quentinho com manteiga e cevada ou leite ou chá; vamos, todos os anos, a uma Escola de Hotelaria fazer um showcooking de sopa seca; em colaboração com a Escola Secundária de Valongo e com a Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Politécnico do Porto, nossas Confrades Honorárias, fazemos um jantar de inovação com os nossos produtos – o pão e os biscoitos – e temos tido agradáveis surpresas. Para terminar, dizer que levamos longe a nossa terra e os nossos produtos, pois fomos ao Programa “a Praça” da RTP1, já por duas vezes, ao Programa, Aqui Portugal, também da RTP1, ao Programa Somos Portugal, da TVI, por duas vezes e ao Programa “Alô Ricardo” do Porto Canal; vamos, anualmente, a mais de 50 Capítulos de outras confrarias, em todo o Portugal, incluindo as regiões autónomas e em Espanha. Participámos, com a sopa seca, no concurso Sete Maravilhas Doces de Portugal, em que chegámos à pré-final. Enfim, somos O MELHOR EMBAIXADOR de Valongo e destas suas iguarias, dentro e fora de fronteiras!

    Atendendo ao Covid-19, em 2020, e enquanto durar esta situação de pandemia, temos suspensas as nossas atividades que envolvem o ajuntamento de pessoas. Referir, a este propósito, que, no ano passado, afetamos um valor significativo das nossas quotas à oferta de uma regueifa e uma dúzia de pães a cerca de 750 famílias necessitadas do nosso concelho. Tivemos, para tal, a colaboração de 9 associações sem fins lucrativos que operam no terreno. Enfim, vamos fazendo o que nos é possível e estamos satisfeitos com o nosso trabalho!

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    AVE: Agora uma questão, se calhar mais no sentido de desvendar o segredo do fabrico. Ou seja, porque é que a qualidade do pão de Valongo atingiu a fama que atingiu fora das portas do concelho? O que tinha, ou ainda tem, este produto de diferente para que hoje seja rotulado como um património material e imaterial?

    RMR: O fabrico do nosso pão não tem nem nunca teve segredos na manga. O segredo estava na mão, na maestria dos nossos padeiros e padeiras que o faziam com muito amor e esse sentimento transmitia-se ao produto final. Além disso, era muito importante a qualidade dos produtos usados – o trigo transmontano tinha uma qualidade superior ao do Douro Litoral. O pão faz-se com água e a água de Valongo era, então, uma água pura e cristalina, por isso dava um gosto especial ao pão. Por outro lado, quando chegou a Portugal, o trigo americano era misturado com o nosso e fazia o pão mais fofinho … a tudo isto se juntava uma moagem cuidadosa do milho, nos moinhos do rio Ferreira, e a lenha das serras de Valongo na cozedura! A combinação de todos estes elementos levava a um produto final apreciado em Valongo e nas redondezas, em especial na cidade do Porto. Dois dos nossos Confrades Produtores continuam a produzir o pão de forma artesanal.

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    AVE: Hoje em dia, talvez por causa do fenómeno da cada vez maior industrialização dos vários setores de atividade, onde a panificação não será exceção, será que Valongo perdeu alguma expressão na produção deste tipo de produto em relação ao que era há décadas ou até mesmo há séculos, ou pelo contrário, continua a destacar-se como a capital do pão, da regueifa e do biscoito?

    RMR: Sinceramente, a mecanização e consequente “uniformização” do cultivo dos cereais, do fabrico e cozedura do pão e a utilização da água de fornecimento público, fez/faz com que o pão de Valongo de hoje seja semelhante ao de outras paragens. No entanto, pelo seu fabrico/manuseamento, a regueifa de Valongo ainda se distingue e é um produto muito apreciado, não só por nós, mas também por quem nos visita ou cá se desloca para a comprar. Quando falamos, fora do concelho, sobretudo em terras mais longínquas, que somos de Valongo, normalmente somos logo interrogados “Valongo, a terra da regueifa e dos biscoitos?” Ou então “Ainda me lembro de o comboio parar na estação de Valongo e haver senhoras a apregoar “Regueifa de Valongo”. “A boa regueifinha, quem quer comprar?”. Ou, ainda, outros que dizem, “sempre que passava a Valongo de carro, parávamos para comprar regueifa e ir à fábrica X comprar biscoitos”! É, precisamente, por isso que se justifica a criação da Confraria do Pão, da Regueifa e do Biscoito – para não deixar cair estas recordações.

    AVE: Durante décadas, ou mesmo séculos, uma grande parte das famílias de Valongo vivia do fabrico do pão. Era comum porta sim, porta não, haver uma padaria. Porque é que, entretanto, se perdeu esta tendência, foi só por causa da tal industrialização falada, de processos de trabalho mais mecanizados, ou foi uma prática que se foi perdendo com o passar das gerações?

    RMR: Efetivamente houve tempos em que, em Valongo, havia, praticamente, apenas dois tipos de trabalho, a lavoura e o fabrico de pão. Além disso havia outra tradição – filho/a de padeiro/a casava, normalmente, com filha/o de padeiro/a e, quando casavam, os pais montavam-lhes uma padaria para sustento da nova família. No entanto, com o tempo, como já referido, a venda de pão ao Porto foi decaindo, os processos de fabrico foram sendo mecanizados, por isso o tempo despendido era menor. Em tempos idos, os padeiros começavam a trabalhar quando a população ia dormir, para, na manhã seguinte, haver pão fresco. Hoje, faz-se pão em pouco mais de uma hora. As padarias começam a trabalhar pelas 5/6 horas. Além disso, o trabalho manual foi substituído pela máquina. Por isso, hoje, há muito menos padarias, porque em menos tempo se produz muito mais! De qualquer modo dizer que, mesmo assim, há espaço para novos estabelecimentos, desde que apostem na especialização, diversidade e inovação.

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    AVE: Pelo contrário, o biscoito de Valongo ainda hoje é famoso, não só a nível nacional como também internacional, com algumas empresas locais ainda em atividade. Ou seja, ainda há uma tendência permanente de fabrico que não se perdeu nos tempos...

    RMR: O biscoito – biscoito, isto é cozido duas vezes – mantém a sua fama, depois de ter passado por um período de crise, devido a duas razões principais: por um lado, porque hoje o que é artesanal, o que é nosso, o que é português é bom, está na moda. A partir do terceiro quartel do século passado e até ao início do seculo XXI, o que era estrangeiro é que era bom!; por outro lado, e comparando com o pão, o biscoito tem uma longa duração, pois, devido à dupla cozedura, fica sem oxigénio (por isso até há quem diga, mas ainda não está cientificamente provado, que os Biscoitos de Valongo iam nas naus com as quais Portugal abriu o mundo ao mundo!) e, por isso, mantém-se durante muito tempo e pode ser levado para muito longe. Daí, hoje, os nossos biscoitos fazerem parte do mercado da saudade! É esta, a meu ver, a razão de o biscoito de Valongo estar na moda. Além disso e modéstia à parte, o ressurgimento da procura dos nossos biscoitos deve-se, também, à divulgação feita pela Confraria, pois nós, para todo o lado que vamos, levamos biscoitos dos nossos Confrades.

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    AVE: O pão é um produto que se pode considerar exclusivo de Valongo, sede do concelho, ou as outras freguesias também têm uma história para contar nesta atividade?

    RMR: O pão em si não é exclusivo de parte nenhuma, o pão faz e sempre fez parte da alimentação! Quando falamos em Pão de Valongo, estamos a falar em pão de Valongo freguesia, sem prejuízo de todas as freguesias do município sempre terem cozido o seu pão. Aliás, hoje temos boas padarias em todas as freguesias e algumas delas são nossas confrades.

    AVE: Este legado, este património, que é o pão de Valongo foi, ou é, replicado noutros cantos do país, ou seja, Valongo serviu de ponto de partida para determinado tipo de pão, como a regueifa ou a sêmea, por exemplo, serem fabricados noutros lados? Por outras palavras, somos pioneiros com seguidores noutros cantos do país, e do Mundo?

    RMR: Como acabei de dizer, pão sempre houve em toda a parte. Se a inovação, como o começar a fazer-se o pão pequeno, o que nós chamamos de molete, ou se a regueifa é originária de Valongo, é um bom tema para um trabalho de investigação! De qualquer modo, posso afirmar que os técnicos de panificação formados na Escola Secundária de Valongo, estão a trabalhar em várias terras de Portugal e também noutras partes do mundo, como França, levando consigo, decerto, as nossas tradições. Também temos um Confrade Honorário que é Chef, num investimento no Algarve, já duas vezes premiado com uma estrela Michelin, que utiliza, entre as suas sobremesas, a sopa seca e as rabanadas, que, embora reinventadas, têm a sua origem em Valongo/Campo, nas receitas da sua avó. Onde quer que estejam, os valonguenses são embaixadores de Valongo e das suas tradições.

    AVE: Neste mês de janeiro abriu ao público a Oficina do Pão, da Regueifa e do Biscoito. Foi dado assim um passo importante para perpetuar esta atividade, ou entendem que outras ações poderiam e deveriam ser desenvolvidas nesse sentido?

    RMR: Sim, é verdade que este mês abriu ao público este espaço cultural importante para a guarda e conservação do espólio ligado à panificação e biscoitaria. Tive oportunidade de o visitar e convido todos os munícipes de Valongo a fazê-lo. É um equipamento público bem concebido. Pensamos, no entanto, que a sua visita deverá ser articulada com uma visita a padarias e biscoitarias que queiram associar-se. Saliento que tem um espaço para fazer aquilo que nós, Confraria, vamos fazer às escolas, os já referidos Pequenos-almoços à Moda Antiga, isto é, tem duas cozinhas montadas e preparadas para fazerem workshops, em que os visitantes vão meter as mãos na massa e fazer, por exemplo, biscoitos. A Confraria espera poder vir a desfrutar deste equipamento municipal como espaço de excelência para a dinamização de atividades.

    (...)

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    Por: Miguel Barros

     

     

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