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Edição de 31-03-2024
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    Arquivo: Edição de 30-11-2016

    SECÇÃO: Crónicas


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    Será justo dizer que a Língua Portuguesa é traiçoeira?

    Certa vez, um conhecido humorista da nossa praça concluía que "a Língua Portuguesa é muito traiçoeira", depois de um trocadilho que modificava o sentido de determinada frase. Ao contrário de milhares de expressões idiomáticas, entre elas os provérbios cuja autoria se desconhece em Portugal como em todo o mundo, esta afirmação sabe-se quem a produziu pelo que me abstenho de referir o seu nome. Para não ser obrigado a pagar direitos de autor, basta que tenha o indispensável cuidado de anteceder a expressão do habitual segmento de frase "como dizia o outro…", não se diga depois que estou a enfeitar o discurso com algo que não pertence ao meu acervo de conhecimentos. A existir traição, ela seria perpetrada por quem a pronunciou, pela interpretação de quem a recebeu e pela variedade de sentidos de que as palavras são portadoras. Sendo o autor, como já referi, um dos nossos humoristas mais conhecidos, fácil é admitir e compreender a intenção de provocar o riso àqueles que o ouviam. A dita frase tornou-se lugar-comum utilizado sempre que dá jeito ao utilizador.

    Antes de mais, convém termos presente que a Língua é um instrumento privilegiado de que nos servimos para estabelecer comunicação com todos os que a têm como sua ou que a ela recorrem para os mais diversos fins. É um código constituído por sinais peculiares a que damos o nome de signos linguísticos. Estes são utilizados para compor mensagens orais ou escritas enviadas por um emissor e destinadas a um ou mais recetores, em determinados contextos verbais e não-verbais. Os signos que a compõem e a que comummente chamamos palavras ou vocábulos organizam-se de forma lógica, obedecendo a regras aceites e praticadas pelos seus falantes e que, tal como estes, evoluem, sofrem alterações de acordo com as épocas e as condições de vida da comunidade ou das comunidades que dela se servem. O contexto verbal de uma frase é constituído pelas relações que ela estabelece com as demais palavras da dita frase.; chama-se contexto não-verbal às condições que rodeiam o ato de fala. A frase dita em condições outras, que poderiam causar perturbação no sentido que se pretende conferir-lhe, não seria aceitável. Costuma dizer-se que está fora do contexto. É, pois, a pluralidade de sentidos (polissemia) das palavras que, frequentemente, conduz à suposta "traição" da Língua Portuguesa. A traição não reside na língua mas nas intenções dos sujeitos falantes que, por bem ou por mal, modificam o sentido das mensagens.

    A Língua Portuguesa é, hoje, considerada por filólogos, linguistas, escritores, poetas, e falantes de outros idiomas como etimológica e lexicalmente riquíssima, maleável, suave, poética. Samuel Beckett, o escritor irlandês que adotou o Francês como língua de expressão literária e que fez da França a sua segunda pátria, Prémio Nobel de Literatura em 1968, numa entrevista concedida ao Professor Arnaldo Saraiva, professor da Universidade do Porto, que lhe perguntou se preferia responder às questões em Francês ou em Inglês, optou pelo…Português. Perplexo, o entrevistador perguntou-lhe:

    - O senhor conhece a nossa língua?

    - O suficiente para ler Fernando Pessoa no original - foi a sua resposta ante a admiração de Arnaldo Saraiva.

    E uma vez que se fala de Fernando Pessoa, convém dizer que foram escritores, ensaístas e críticos literários de outras línguas e culturas quem descobriu e primeiro enalteceu o génio do nosso grande poeta antes mesmo de qualquer português, possivelmente pelo abalo e persistente má imagem que ele e seus colegas modernistas (grupo da revista Orpheu) causaram na sociedade portuguesa da primeira metade do século XX. A imprensa dessa época traduziu tal incompreensão e criticou acerbamente esse grupo de loucos que deveriam ser internados em Rilhafoles (1).

    Esta situação não é muito diferente da que ocorre com Camões um digno alvo, ao longo dos séculos, de inúmeros estudiosos portugueses e estrangeiros que, na sua obra poética especialmente em "Os Lusíadas", encontraram outras formas de análise e novos sentidos para além da exaltação patriótica que o seu conteúdo tem suscitado e das transformações históricas que a epopeia representa e desperta. Além de Camões na epopeia, também Gil Vicente se distinguiu no género dramático e ganhou lugar de relevo na Literatura Portuguesa do século XVI e seguintes.

    A Língua é um organismo vivo que reflete as virtualidades e as vicissitudes do povo ou dos povos que a utilizam. "Última flor do Lácio" como a intitulou o poeta brasileiro Olavo Bilac, o Português foi a derradeira das línguas chamadas neolatinas ou novilatinas resultantes do chamado Latim Vulgar (2) a constituir-se como língua nacional de um país. Só em 1290, é que o rei D. Dinis proclamou a Língua Portuguesa como Língua Oficial do Reino e dessarte usada em todos os documentos, embora fosse já corrente desde o século IX no território que viria a constituir-se como Nação aproximadamente um século antes. Com os portugueses o idioma foi levado aos quatro cantos do mundo o que vale por dizer a todos os continentes. Hoje é a 4ª língua mundial em número de falantes só atrás do Mandarim, do Inglês e do Espanhol ou Castelhano. Além dos habitantes do nosso retângulo e dos arquipélagos dos Açores e da Madeira, o Português é falado no Brasil, em Angola, Moçambique, Guiné Bissau, Cabo Verde e Timor embora neste último país nem todos o falem e escrevam dando preferência ao Tétum. Em várias localidades da Ásia (Malaca, Sri Lanka, antiga Ceilão, Goa, Damão e Diu, Bengala e outras) subsistem dialetos que incorporam vocabulário e estruturas da nossa língua embora não sejam considerados como seus falantes. É, pois, uma língua nobre e valorizada mesmo por quem não a utilize regularmente. Em várias instâncias, é reconhecida como Língua de Comunicação Internacional e tende a ser adotada também noutros areópagos. Organismo vivo que é, a nossa como todas as Línguas, está em processo contínuo de mudança, palavras e construções que surgem (estrangeirismos, neologismos,…), outras que se mantêm, (léxico usado em certo período), ainda outras que reaparecem depois de um ocaso mais ou menos distante (arcaísmos) algumas que deixam de ser usadas e caem no esquecimento.

    (1) Rilhafoles - Convento, depois, Hospital conhecido pelo mesmo nome e, a partir de 1911 Hospital Miguel Bombarda em homenagem ao célebre médico e revolucionário republicano.

    (2) Latim Vulgar - forma da Língua Latina falada por colonos romanos, comerciante e gente do povo, diferente do Latim Clássico falado e escrito pelos escritores e gente das classes superiores e mais instruídas.

    Por: Nuno Afonso

     

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