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Edição de 31-03-2024
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    Arquivo: Edição de 30-06-2016

    SECÇÃO: Crónicas


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    A Leitura e a escrita

    Existe uma relação de necessidade entre os atos de ler e de escrever? Mais explicitamente: quem gosta de ler gosta também de escrever? Poderia parecer que sim pela maneira como sempre nos referimos a essas duas valências em se tratando do conhecimento da língua. A aprendizagem sistemática sempre se fez em simultâneo desde o tempo em que o homem passou a saber utilizar uma forma de fixação das suas necessidades comunicativas. Esse momento foi de capital importância a tal ponto que marcou os limites entre a Pré-História e a História há cerca de 5000 anos. Como o domínio da escrita foi, de início, limitado a certas pessoas por necessidades coletivas, religiosas ou utilitárias, se tivermos em conta o que acontece à nossa volta, a leitura, no sentido mais amplo de compreender os fenómenos da vida, a faculdade de interpretar o que nos rodeia, precedeu a escrita mas se, pelo contrário, restringirmos a interpretação das duas palavras ao que é comummente aceite, as duas competências costumam vir a par. As crianças vão à escola aprender a ler e a escrever como se fossem as duas faces de uma só moeda. Há casos em que a escrita tomou a dianteira, sempre que, por necessidades sociais, foi preciso saber apor o próprio nome em documentos. Conheci pessoas que desempenharam cargos públicos e que não sabiam mais do que desenhar o próprio nome. Pouco a pouco, foram alargando o conhecimento a algo de que mais precisavam e/ou pedindo ajuda a familiares e amigos próximos possuidores de algumas letras. Da imperiosa necessidade de traçar carateres antes desconhecidos - em desenhá-los, insisto! - foram chegando ao ponto de encontro das duas aprendizagens. Mas essas talvez tenham sido situações menos vulgares.

    Salvo casos excecionais de autodidatas, a frequência de uma escola era condição indispensável para se aprender a ler e a escrever. Infelizmente, ao longo da nossa História, a instrução não foi uma prioridade. Aquando da Revolução Liberal de 1820, 90% da população portuguesa era analfabeta e, no final desse século, a taxa ainda ia aos 78% da nossa gente. Entrada a República, Afonso Costa afirmava: "a pior herança que a Monarquia nos deixou foi o analfabetismo." Ao longo de décadas, os avanços no sentido de proporcionar aos portugueses o acesso ao ensino foram penosos. Em meados do século XX, a formação de professores para o Ensino Primário era ainda insuficiente e, em muitas aldeias, quiçá na maioria delas, o recurso a Professoras de Posto de Ensino, popularmente chamadas "posteiras" (1), não era exceção antes a regra e, quanto aos alunos, poucos eram os que completavam esse primeiro grau, em geral não iam além da 3ª classe e ainda persistia a convicção de que as raparigas não deveriam aprender a ler e escrever porque isso só lhes serviria "para escreverem cartas aos namorados" numa época em que a autoridade paterna era determinante nesse domínio. Uma vez que a agricultura de subsistência pressupunha que os rapazes viessem a ser lavradores como os seus pais, em matéria de instrução bastava que soubessem ler e escrever ainda que mal, sendo de menor importância terminarem a Escola Primária já que ninguém pensava em mandar os filhos prosseguir os estudos. Nas comunidades urbanas, uma vez concluído o primeiro nível, os alunos transitavam para o Liceu ou para a Escola Industrial sem maiores dificuldades ou despesas incomportáveis. Dessa forma, ia-se mantendo a separação entre as comunidades aldeãs e citadinas, estas muito mais favorecidas em termos de custos para a educação da prole e para acesso dos jovens ao mercado de trabalho.

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    Entre os milhões de pessoas que gostam de ler e que leem com desembaraço, haverá uma percentagem reduzida de amantes da escrita. A leitura é privada, a escrita é destinada ao público seja ele apenas a pessoa que escreve ou um conjunto de potenciais destinatários. Há quem goste de escrever apenas por um apelo íntimo de confiar ao papel os seus anseios, as suas emoções, os seus desabafos como se fora a um confidente de seriedade absoluta. Os "diários" que, em gerações passadas, foram quase objeto de culto, mormente entre a juventude feminina, perderam gradualmente a aura que os envolvia. Foi esse hábito que trouxe à ribalta o "Diário de Anne Frank" envolto num culto que o nazismo e o trágico destino da jovem Anne favoreceram. No entanto, a paixão pela leitura só em reduzida percentagem foi acompanhada de igual interesse pela escrita. E, quando ocorria, os resultados dessa pulsão tinham como destino gavetas e baús semiclandestinos.

    Em tempos mais recentes, cresceu bastante, porém, o gosto de transmitir pensamentos e emoções, de partilhar histórias com outras pessoas em formato de livro. Proliferaram editoras que, por infelicidade, vão cuidando mais dos próprios interesses comerciais do que do apoio a escritores desconhecidos do grande público. Miguel Torga, já escritor consagrado, privilegiava as edições de autor para que as suas obras não onerassem demasiado quem tivesse gosto em adquiri-las. Mas para o escritor anónimo a ousadia de mandar imprimir um livro arrostando com as despesas inerentes e procurando apoios para que a sua obra chegue ao público é tarefa ingente, nem sempre bem entendida, cujos frutos se limitam, via de regra, a uma que outra referência dos leitores que tendem a compará-las com escritores da moda. Escusado será dizer que neste prato da balança estão, além do livro, o nome já adquirido pelo seu autor e a favorável predisposição ao abordá-lo, enquanto no outro prato o nome do autor não tem peso e na abordagem o ónus da prova recai inteiramente sobre o que é dado a ler. Neste caso, o único elemento valorizador é o conhecimento pessoal e os gostos afins de autor e leitor.

    (1) "Posteiras" - Podiam propor-se ao desempenho desse cargo homens ou mulheres que tivessem concluído com aprovação o Ensino Primário e frequentassem um curso breve de atualização de conhecimentos científicos e pedagógicos.

    Por: Nuno Afonso

     

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