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    Arquivo: Edição de 30-04-2010

    SECÇÃO: Crónicas


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    Namoro à antiga

    “O homem que não ama apaixonadamente ignora a parte mais formosa da existência.”

    Uma frase tão trivial e pretensiosa, quando retirada do seu contexto, ficou gravada na memória de Ricardo depois que leu a carta de despedida que a namorada lhe entregara havia algumas horas. Guardara-a no bolso do casaco, por temer que se amarrotasse, retirando-lhe assim a frescura do papel, chão lavrado pela sua mão delicada e privando-o do perfume que dele se evolava. Lê-la-ia em casa, na privacidade do seu quarto, para beber uma a uma as últimas palavras saídas da boca que ainda há pouco beijara. Leu e releu aquelas duas folhas cheias de letrinhas alinhadas e bem desenhadas como as formas do corpo de quem as tinha escrito. Permaneceu naquele doce enlevo até que a mãe o chamou, num tom em que havia algo de repreensão, para que ajudasse nos preparativos da viagem.

    O chamamento sobressaltou-o e, no primeiro instante, sentiu-se nervoso, invadiu-o mesmo certa irritação como se o houvessem surpreendido a cometer alguma falta ou por lhe terem quebrado o encanto e escondeu apressadamente a carta debaixo dos lençóis. Foi uma vaga instantânea que logo refluiu ao pensar que a mãe tinha toda a razão em chamá-lo, ela aplicada em acomodar na mala o enxoval que havia definido como indispensável, cada naipe no seu lugar para que o menino, que em breve ia perder, não pusesse tudo em rebuliço ao retirar alguma coisa quando fosse necessário, enquanto o marmanjo se fechava no quarto, entretido sabe-se lá em quê. Deveria estar ali e tomar conhecimento de tudo pela singela razão de que, doravante, ficaria, em definitivo, entregue a si mesmo. Na manhã seguinte, bem cedo, sairiam rumo à cidade onde Ricardo tomaria a automotora que haveria de conduzi-lo à estação do Tua, ali conectando a Linha do Norte com destino ao Porto. Era preciso deixar tudo pronto para não saírem tarde que a automotora tinha horário e não esperava por ninguém. Era o sentido prático da vida contra o canto de cigarra da juventude

    De repente, apoderou-se dele o sentido da urgência. Iria fazer uma viagem longa, pela primeira vez sozinho, embora já lhe houvessem explicado miudamente como teria que proceder e a mãe lhe tivesse feito tantas recomendações que receava se atropelassem na sua mente e, chegada a hora das dificuldades, o deixassem indeciso quanto à escolha. O tio José ou a tia Maria dos Anjos estariam à sua espera em S. Bento, essa certeza dava-lhe alguma tranquilidade mas, até lá… E tentava rememorar o que lhe haviam dito quanto ao transbordo da automotora para o comboio: “não te esqueças da mala e vê lá se te avias, caso contrário não arranjas lugar e tens que fazer o resto da viagem em pé!”; e a propósito de cuidados a ter com estranhos: “tem cuidado não te roubem o dinheiro, responde educadamente, mas não estendas a conversa com gente que não conheces!” Acercou-se da mãe e ficou atento porque ela não parava de lhe dar informações e conselhos a propósito da viagem dentro do país e no transatlântico que o levaria ao Brasil.

    A noite ainda dormitava quando entrou na automotora e procurou lugar ao pé de uma janela. Temia que o seu estômago protestasse contra os cheiros fortes a carvão e a óleos característicos das gares ferroviárias que impregnavam também o interior das carruagens e contra os estrelouços da composição em movimento. Em criança, fora protagonista de episódios desagradáveis, entretanto crescera, o seu organismo estava agora menos susceptível a esses incómodos. Além disso, gostava de observar a vida que decorria lá fora e se ia, constantemente, renovando.

    Alguns quilómetros vencidos, adivinhava-se já o sol pelo dourado dos cumes montanhosos e a escuridão esvaía-se célere, desvelando campos, árvores e povoações, carros puxados por juntas de vacas a caminho das leiras, incentivadas pela voz dos donos ou pela aguilhada a espevitar-lhes a preguiça; da semi-escuridão subia o balido das ovelhas, o berro das cabras, o latido dos cães e os gritos do pastor a chamar o rebanho, silenciado já o canto do galo, agora no segundo sono após o cumprimento do dever e antes do terceiro e último despertar. Aos seus ouvidos chegavam apenas fragmentos de sons que a memória completava.

    À medida que o tempo decorria e a composição galgava terreno, também a paisagem adquiria cambiantes diversos. Se àquela janela estivessem olhos de poeta, teríamos, decerto, magníficos versos capazes de traduzir, agora o bucolismo de terras cultivadas ou prontas a receber as sementes, prados atravessados por regatos pressurosos e múrmuros, árvores revestidas de folhas tenras num banquete oferecido às lagartas e aos pássaros recém-chegados de terras longínquas; mais além montes cobertos de uma vegetação agreste de tojos, urzes, carrascos, e touças de carvalhos ou de sardões e de bíblicas oliveiras, tão presas àqueles solos humildes como os donos que, de geração em geração, delas retiravam o salutar engodo para a frugal dieta quotidiana e o combustível precioso que iluminava a sua existência e alimentava a lâmpada em permanente homenagem ao Santíssimo na solidão das igrejas; adiante, e acompanhando o curso do Tua, não saberiam o que mais admirar, se a agressiva configuração das vertentes do rio, se a teimosia do engenho humano a romper o penhascal selvagem, abrindo passagem às gentes do nordeste na sua teimosa procura de um mais fácil acesso ao litoral. Ricardo ouvia o rugido bravio da água que fustigava as pedras do leito, via aquele animal líquido apertado na tenaz das escarpas, a espadanar em violento protesto ele que, alguns quilómetros atrás, dispusera de cama larga e confortável. Tão revoltado seguia que, ao encontrar o irmão maior, não se lançou em seus braços, levou suas águas escuras rente à margem direita por longo espaço até que a cólera abrandasse para, enfim, confraternizar.

    Ricardo seguiu à letra as recomendações maternas e, já instalado no comboio, foi mastigando o farnel enquanto o pensamento vagueava pelos anos da infância e juventude, pelos primeiros amores que idealizara desde a prima bonita e sem atavios à catequista donairosa no viço esplendoroso dos seus vinte e poucos anos. Uma vez decidida a entrada no Seminário, estavam-lhe cerceadas as inclinações naturais que ditavam o coração e os sentidos. Ocupado com os estudos e vigiado pelos pais e pelos professores, fazia por ignorar o alvoroço que sentia nos breves contactos com as raparigas que apareciam na sua vida semelhantes a cometas que se nos mostram, causam impressão forte e logo desaparecem. Emília foi a sua primeira namorada a sério mas não correspondeu ao mito que se criou acerca do “primeiro amor”. Escreveu-lhe apenas quando chegou ao Brasil para dar conta dos incidentes da viagem e renovar os protestos de amor, ainda sob o efeito do trauma da separação. Pouco a pouco, foi deixando de pensar nela. Anos depois, soube que tinha casado.

    Um dia Ricardo voltou a Portugal e, sem premeditação, voltaram a encontrar-se. Porém, essa página foi arrancada ao registo das suas vidas.

    Por: Nuno Afonso

     

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