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    Arquivo: Edição de 10-09-2009

    SECÇÃO: Crónicas


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    Um drama em três actos e um epílogo – 1º acto

    O curto braço da justiça

    Nossa Senhora das Neves, no alto da serra de Nogueira, é uma romaria centenária que junta novos, velhos e nem uma coisa nem outra, de trinta de Agosto a oito de Setembro, e inclui uma novena preparatória e o dia de festa da Padroeira. Senhora da Serra, assim o povo lhe chama: “Vais à Senhora da Serra, este ano?”

    Os pagadores de promessas ou apenas devotos da Senhora chegavam das aldeias em redor ou da capital nordestina e instalavam-se numa espécie de celas conventuais de séculos passados, distribuídas por dois blocos construídos bem perto da Igreja onde tinham lugar, ao longo de cada dia, diversos actos litúrgicos: celebração da Missa, pregação, reza do terço e novo sermão, sempre a cargo de um renomado pregador, sem falar nas dolorosas penitências: voltear o templo, de joelhos, uma ou mais vezes, consoante a valorização que o(a) devoto(a) atribuía à graça recebida.

    Esses cubículos, em extremo desconfortáveis, eram alugados pela Comissão Fabriqueira do Santuário a famílias que, no acto, se tornavam responsáveis pelo que viesse a ocorrer em tão reduzido espaço. Eram conhecidos por quartéis. Ali eram cozinhados os alimentos para membros do grupo familiar e convidados, instalavam-se os apetrechos domésticos, arranjava-se lugar para uma pequena mesa e bancos, um ou dois colchões de palha e, a um canto, com o devido recato, um balde para a satisfação de necessidades fisiológicas urgentes de mulheres e crianças que, a seu tempo, alguém iria despejar na vertente leste, o mais distante possível do aglomerado humano.

    “A Senhora da Serra tira a merenda e dá a vela” – o provérbio, conhecido em toda a zona envolvente, aludia à redução dos dias e ao início de serões mais prolongados, característicos dos tempos de Outono e Inverno que estavam quase a chegar. A jornada de trabalho era mais curta, a noite sobrevinha tocada de urgência, “pela hora do sol”, às sete já as sombras embalavam a Terra, tornando desnecessária uma refeição a meio da tarde; antecipava-se a ceia, havia horas compridas para a vivência familiar. Em tempos idos, os jovens de ambos os sexos eram numerosos e acorriam a esta autêntica festa anual, encetando ou dando continuidade a namoros ou, tão só, para se divertirem. Com frequência, dormiam lado a lado sobre o chão de terra batida, mais recentemente cimentado, dos quartéis, envoltos numa simples manta, à atenção dos mais velhos que dormiam com um olho aberto e outro fechado, porque “o Diabo é tendeiro” e podia “pregá-la na menina do olho”. Mas, nesse tempo, havia mais respeito, assim diz o povo.

    Foi numa dessas manhãs, antes de cantar o galo, se galos houvesse em tal sítio de residência temporária, que a Dª Alice deixou, sorrateiramente, o seu quartel para libertá-lo de dejectos e/ou fluidos nocturnos e se dirigiu, de balde na mão, para o declive das traseiras do edifício, desaparecendo, célere, num nevoeiro de cortar à foice. No regresso, ouviu ruído de passos ligeiros mas determinados, a pisar o cascalho do caminho, vindos do lado norte. Não lhe parecia o andar de quem vai com pressa de se aliviar ou para cumprir uma acção como a que acabara de efectuar, e os noctívagos, que tivessem demorado em qualquer antro de jogatina ou borracheira, não precisavam de aligeirar o andamento já que dispunham de toda a manhã para acertar o sono e aliviar a ressaca. O nevoeiro não permitia distinguir fosse o que fosse meia dúzia de passos à frente do nariz. Por mera curiosidade, esperou um tantinho e pasmou ao reconhecer na caminhante a tia Paixão de Muros Baixos, embiocada num lenço negro a condizer com blusa, saia e meias, como se fora viúva. Morando na cidade, mas habituada a lidar com as pessoas das aldeias em redor na companhia do marido, por força da profissão de alveitar que este exercia, à Dª Alice não lhe escapava um rosto e por todos era estimada. Dirigiu-se-lhe:

    – Não sabia que tinha vindo à novena, tia Paixão.

    – Não tenho estado cá, este ano, Dª Alice. – respondeu, pondo, de imediato, os olhos no chão e retomando a marcha.

    A Dª Alice notou-lhe as feições alteradas, que o andar estugado confirmava, e, na sua cabeça, o alarme soou. Ainda procurou retê-la avisando:

    – Se vai à igreja, é melhor não ter pressa, porque só abre lá para as oito e, neste momento, ainda falta um quarto para as seis. Aqui na serra, a esta hora da manhã, está sempre frio e o nevoeiro também não ajuda. Venha daí até ao meu quartel, aqueço-lhe um bucho de leite e come alguma coisa. De Muros Baixos até aqui fez uma grande caminhada, precisa de se alimentar. Venha lá, venha!

    Pegou-lhe, familiarmente, num braço e levou-a consigo. Os dois filhos já se tinham levantado e o compartimento encontrava-se arrumado. A Dª Alice puxou um banco e convidou-a a sentar-se, enquanto lhe preparava o pequeno-almoço. Discretamente, ia-lhe observando os gestos: a mulher parecia fascinada com algo na parede em frente, o seu olhar deambulava de um extremo ao outro, mas não se fixava em nenhum ponto, o rosto crispado arrepanhava-lhe os cantos da boca num ricto de mágoa e desespero. Subitamente, levantou-se, murmurou um agradecimento e saiu do quarto como se precisasse de recuperar o tempo que perdera. A Dª Alice recomendou à filha que tomasse conta de tudo e foi no seu encalço.

    O nevoeiro ia-se esgarçando sob os raios do sol, a visibilidade acrescia, contudo ainda imperava o silêncio naquela aldeia efémera. A tia Paixão subiu os degraus que davam acesso à igreja e foi sentar-se no muro do adro, lá para trás, fora do alcance visual de possíveis bisbilhoteiras.

    A Dª Alice regressou ao quartel e entregou-se aos cuidados domésticos até que o sino chamasse à devoção. Logo que as portas da igreja foram abertas, a tia Paixão esgueirou-se, para um sítio resguardado de olhares curiosos. Logo atrás, ajoelhou-se a Dª Alice, certa de que algo de grave iria acontecer e disposta a impedir que a sua amiga corresse algum perigo ou cometesse qualquer imprudência.

    Na sacristia, vários sacerdotes de paróquias circundantes paramentavam-se para a concelebração da Eucaristia. Em breve, subiriam ao altar. A tia Paixão apercebeu-se de que a Missa estava prestes a começar pela movimentação dos acólitos que voltavam à sacristia, deixando tudo preparado para o Santo Sacrifício. Levantou-se, como impulsionada por uma célula eléctrica, subiu quase a correr à capela--mor, fez ligeira reverência na direcção do sacrário e invadiu a sacristia, brandindo uma faca de cozinha e gritando em voz estentórea como saída da goela de um demónio:

    – O maldito? Onde está esse maldito padre da Corujeira que o hei-de mandar para o inferno…?

    A Dª Alice, que viera atrás dela na expectativa de evitar uma situação embaraçosa, ainda conseguiu prender--lhe os braços, evitando que o sacerdote mais próximo fosse atingido, uma vez que, pelo inesperado, todos ficaram paralisados, como se fossem estátuas num museu de cera. O sacristão, que regressava do altar, ajudou a dominar a fúria da mulher e, juntamente com a Dª Alice, conduziu-a por uma porta que dava para o exterior. No meio de tantas emoções, poucos se terão apercebido de que um automóvel arrancara a grande velocidade envolto numa nuvem de pó.

    Por: Nuno Afonso

     

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