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    Arquivo: Edição de 31-07-2009

    SECÇÃO: Crónicas


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    O Bom Samaritano

    A meio da ponte, o condutor reduziu a velocidade do automóvel porque um braço erguido lá mais adiante, no início da primeira rua à direita, despertou nele, simultaneamente, generosidade e curiosa expectativa. Gostava de dar boleia a quem lha solicitava por ter os bolsos vazios, não obstante os repetidos avisos de familiares e amigos quanto ao risco a que ficava exposto devido à onda de criminalidade existente nos dias actuais. E que bizarra atitude essa de pedir boleia no centro de uma cidade com tantos meios de transporte à disposição qualquer que fosse o destino desejado!

    Encostou o veículo ao passeio e empurrou a porta, a facilitar a entrada da jovem que não se fez rogada. O condutor saudou-a sem exageros de simpatia e, tranquilo, aguardou que se instalasse, indiferente aos cláxons nervosos dos que vinham atrás e teimavam em fustigar-lhe os tímpanos. A moça vestia--se com sobriedade de que não estava ausente algum bom-gosto, saia azul com blusa branca, sapatos rasos e carteira a condizer, cabelo cuidado de um castanho-claro e olhos da mesma cor a tender para o verde, vivos e expressivos. Poder-se-ia dizer que era bonita e proporcionada, no seu quase metro e setenta. Tinha os lábios pintados de uma cor discreta e, como único adorno, usava um fio de ouro de que pendia uma cruz.

    Antes de responder ao cumprimento do condutor ou de fornecer qualquer outra explicação, atirou:

    - Quero, desde já, informá-lo de que sou religiosa.

    Embora surpreendido com início de conversa tão inesperado, o homem inquiriu:

    - Posso saber porque está a dizer--me isso?

    - Bem, é que os homens costumam entender mal as situações. Vêem uma mulher e julgam-na mal. Começam a olhar-lhe para as pernas, medem-nas de alto a baixo e vão-se aproximando, dali a nada tentam conduzir e manobrar a barra das velocidades com uma só mão, enquanto a outra vai tacteando, sorrateira…acho que não é preciso dizer mais nada.

    - Compreendo, no entanto parece--me que a irmã está a tomar o todo pela parte. Fique tranquila. Posso fazer-lhe uma pergunta?

    Como não obteve resposta, tomou o silêncio como assentimento:

    - Já professou? Que nome adoptou?

    - Nome? Ora… Joana, Joana Silva é o nome que consta no meu Bilhete de Identidade. Porquê, tinha que mudar de nome?

    - É normal que, ao professar, à noviça seja permitido escolher um nome relacionado com algum dos atributos de Jesus ou da Virgem Maria, por exemplo Teresa do Menino Jesus, João da Cruz, Maria da Imaculada Conceição, Manuel das Cinco Chagas…

    Já agora, se me permite, irmã, qual é a sua Ordem religiosa?

    - A Ordem? É assim: somos freiras sem hábito e trabalhamos em colégios, nas igrejas com grupos de jovens…

    - Desculpe insistir, mas como se chama a Ordem a que pertence? São franciscanas, carmelitas, doroteias…?

    - Ah! Claro. Falamos muito de S.Francisco… é isso: somos franciscanas.

    Calou-se. Era notória a sua atrapalhação com semelhante interrogatório. Mas o condutor insistiu:

    - E, neste momento, qual é o seu trabalho?

    - Dou apoio a uma irmã mais velha. Mas porque me faz tantas perguntas?

    - Olhe! Porque, desde o início, duvidei que fosse, de facto, religiosa. Agora tenho a certeza de que não o é. Notei que hesitava muito nas respostas e revelava falta de familiaridade com questões que são do conhecimento de todas as pessoas que se dedicam ao serviço de Deus. Deixe lá, isso não tem importância.

    - O senhor tem razão. Eu disse que era freira só para justificar o pedido de boleia e evitar chatices. Como sabe essas coisas todas sobre a vida religiosa?

    - É que eu sou padre. Peço perdão se a incomodei com a minha desconfiança. Diga-me lá onde quer que a deixe!

    - Não faz mal. Aprendi coisas que me farão falta daqui em diante. Eu fico já ali na esquina da segunda rua à direita. Muito obrigada.

    Abriu-se num sorriso em que transpareciam simpatia, humildade, uns laivos de tristeza e estendeu-lhe a mão.

    Dias mais tarde, o sacerdote dirigia--se para uma das aldeias a que prestava assistência religiosa quando, de outro veículo, que seguia uns metros adiante, viu ser projectado para a berma da estrada algo que se lhe afigurou um ser humano, ganhando, depois, alta velocidade.

    Encostou o automóvel e correu, aflito, na direcção do corpo. Esqueceu--se até de anotar a matrícula do carro. Certificando-se de que estava viva, pegou no telemóvel e estabeleceu contacto com o INEM. Em seguida, voltou ao seu veículo, pegou na mala de primeiros socorros e correu para junto da vítima, limpando-lhe cuidadosamente o rosto e desinfectando as feridas visíveis. Qual não foi o seu espanto ao reconhecer naquele rosto maltratado, autêntica máscara de sangue e pó, a jovem que transportara dias antes e que se dizia freira. Entretanto, outros condutores já haviam parado e observavam a cena.

    O socorro não demorou a chegar. O clérigo já comunicara para a aldeia que chegaria mais tarde «por motivo de força maior». Seguiu a ambulância ao hospital, identificou-se e forneceu as indicações que eram do seu conhecimento acerca da moça, tendo o cuidado de referir somente os factos relevantes para o fim em vista. Entregou um cartão pessoal à funcionária que o atendeu e solicitou que o informassem quanto ao evoluir do caso. Ele voltaria o mais depressa possível e responsabilizava-se por tudo o que fosse preciso.

    Horas depois, quando regressou, foi informado de que a jovem fora vista por um médico de serviço, tratada a algumas fracturas mas que não sofrera lesões internas. Repousava numa enfermaria, mas poderia receber alta médica se alguém se responsabilizasse por ela.

    Pediu para a visitar. A moça reconheceu-o, agradeceu-lhe muito pelo que fizera e aceitou que a levasse à casa onde alugara um quarto a meias com uma amiga.

    Por: Nuno Afonso

     

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