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    Arquivo: Edição de 15-10-2008

    SECÇÃO: Crónicas


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    A ilusão da riqueza

    Até aos anos subsequentes à 2ª Grande Guerra, os lavradores transmontanos eram considerados pobres, remediados ou ricos não pela casa que habitavam, pelo número de lameiros que possuíam ou de terras que cultivavam, mas consoante as juntas de bois ou de vacas que podiam sustentar, ou seja, mais pela qualidade do que pela quantidade, não tanto pelas parcelas como pelos resultados. Outros índices eram consequência desse: quantos porcos matavam, quantidade de alqueires de cereal que, em cada ano, guardavam nas tulhas ou transportavam ao celeiro da Junta Nacional das Frutas e de que lhes advinha algum rendimento, carros de batatas que as suas terras produziam e que, depois de separadas por tamanho, medido a olho, (grandes para consumo, médias para semente e pequenas para alimentar os animais, em especial os suínos), eram armazenadas em palheiros ou afins.

    Nas aldeias da zona onde vivíamos, dizia-se que era “rico” o agricultor que podia alimentar bem três juntas de cria; remediado o que tivesse uma ou duas; pobre o que não tinha meios para manter animais de tiro, cedendo a força dos seus braços a quem lhe lavrasse as terras ou abrindo sulcos de ganchas ou enxada nas mãos. A experiência havia ensinado aos camponeses que era aquele o melhor critério de aferição do nível das famílias, menos para estabelecer distinções sociais como, sobretudo, para distribuir os dias de «água do povo» pelas casas (famílias) e a força de trabalho a exigir a cada uma nos dias de “conselho”, nome que se dava à reunião dos moradores para tarefas comunitárias tais como arranjar os caminhos públicos, beneficiar moinhos ou qualquer outro equipamento colectivo. Esse critério tinha, naturalmente, os seus opositores. Por exemplo, o tio Zé Ricardo reclamava para si o título de “homem mais rico” da aldeia:

    – Num há home im Alimonde que tenha tanta cria como eu, e tudo o mais «ao consoante».

    Esquecia, deliberadamente, a excessiva magreza das rezes que, para serem conduzidas aos pastos, tinham que percorrer grandes distâncias além de produzirem menos feno, principal forragem que elas consumiam nos currais. Nesses tempos, ainda os ditames da moda feminina eram mal conhecidos, sobretudo nos meios rurais, porque, ao contrário do que nesses certames acontece, os bovinos eram avaliados pela gordura, indicador de força para o trabalho, e pelo pêlo luzidio que lhes conferia um superior grau de beleza. Ainda bem que assim era, senão haveria sempre quem desse apoio ao tio Zé Ricardo e fizesse anedotas envolvendo mulheres e vacas, nada elogiosas para aquelas. Imagino-me a ouvir o Fernando do Serralhão:

    – C’um caraças! Essas gajas podem ser umas vacas mas cheiram bem melhor e são mais gostosas do que as do Zé Ricardo!

    O tio Rijo afirmava que estaria disposto a comprar qualquer propriedade que fosse posta à venda desde que não se encontrasse a mais de 300 metros acima da última casa da aldeia e tinha razão, porque as terras mais férteis eram as que rodeavam o povoado: boas cortinhas, extensas veigas, prados verdejantes, vinhas na encosta mais ensolarada do rio. O melhor que havia a norte e a leste eram as touças de carvalhos lá mais para a serra donde provinha a lenha que ajudava a passar os rudes Invernos de outrora. A casa dos Rijos e a dos Nunes eram as mais abastadas, seguindo-se talvez uma dúzia de remediados, sendo que a maioria da população só não passava mais dificuldades pela solidariedade dos que melhor viviam.

    Para quem desconheça, convém dizer que em Trás-os-Montes impera o minifúndio, que a propriedade das leiras é descontínua e que nem sempre o facto de chamar suas a várias fracções de terreno, por si só, conferia ao dono o estatuto de homem rico. Por outro lado, ao longo de séculos, ali se praticou uma agricultura de subsistência, as terras produziam pouco, ainda que bem trabalhadas e adubadas com o estrume produzido pelos animais domésticos nos currais ou directamente sobre as terras, caso do gado ovino e caprino nos meses em que podia pernoitar no campo. No fim dos anos quarenta do último século, introduziram-se os adubos químicos, seleccionaram-se algumas sementes, o velho arado, quase inteiramente construído em madeira, deu lugar à charrua, mais eficiente na abertura dos sulcos, o que melhorou bastante as colheitas. Mesmo assim, não se fazia mais do que uma colheita por ano, o cereal, só em anos excepcionais rendia dez sementes (um grão de semente produzia dez), contra as duzentas sementes que, segundo o velho Mattoso, produziam as terras de aluvião no Crescente Fértil da Antiga Mesopotâmia, em média não excedia as sete, as vinhas, devido à falta de renovação e selecção das castas, forneciam uma zaragatoa quase intragável e só a batata, não obstante as doenças e as pragas, constituía a base da alimentação das gentes, aliada à hortaliça cultivada nas cortinhas d’à porta.

    Não admira, pois, que a ilusão do enriquecimento fácil embriagasse as pessoas que, dia após dia, lutavam denodadamente pela sobrevivência. Aferravam-se às lendas dos tesouros escondidos nas muradelhas do Couto, um amontoado de pedras que se avistava para além do rio, onde diziam ter existido uma aldeia árabe, destruída não se sabe em que circunstâncias, supõe-se que por cristãos que, posteriormente, a reconstruíram onde agora se encontra. Colhidos de surpresa, os mouros foram aniquilados, deixando grandes riquezas que ali aguardavam outro destino. Tal hipótese é totalmente desprovida de fundamento sob qualquer ângulo de apreciação, mas inflamou as mentes de várias gerações. Alguns levaram o assunto tão a sério que, munidos de pá, ferro e enxadão, revolveram pedras e terra, dias sem conta e só pararam quando, de todo, o ânimo se lhes apagou. Já de minha lembrança, o tio Marcos despendeu tempo e energia a remover tudo o que, anteriormente, já havia sido revolvido inúmeras vezes. Ele, que gostava de versejar sempre que cruzava com alguém pelas ruas da aldeia, inventou uma fórmula encantatória que o ajudasse na pesquisa:

    – Ó mouros da Mourama, / Vinde à Cristandade, / Trazei-nos a riqueza, / Fazei-nos a vontade!

    Outros imaginavam potes de libras em ouro escondidas nas paredes das casas, mormente das mais antigas. Esta ideia tinha melhor sustentação, uma vez que, em tempos idos, não havia o hábito de pôr as economias num banco. Daí as expressões conhecidas: «guardar o dinheiro debaixo do colchão» ou «fazer o seu pé-de-meia». Alguns optavam por escondê-lo em lugares só deles conhecidos, um buraco disfarçado numa das paredes da própria casa onde coubesse um púcaro de barro ou de metal, e ali iam colocando as moedas resultantes dos parcos rendimentos auferidos. Transformar esses haveres em libras implicava algum risco, porque já metia outras pessoas na história, mas não seria de rejeitar tal possibilidade. Por extrema avareza ou porque a morte os colhia subitamente não davam conhecimento do facto a nenhum dos herdeiros. Há notícias de achamento dessas panelas, algumas com moedas, outras vazias em paredes de casas que foram demolidas para dar lugar a novas construções. Em geral, a ilusão desvanecia-se num ápice.

    Por: Nuno Afonso

     

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