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    Arquivo: Edição de 10-09-2008

    SECÇÃO: Crónicas


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    Jogos de espelhos

    palavra desvenda ou oculta, atrai ou repele, elucida ou engana, afaga ou agride, auxilia ou rejeita, com vantagem sobre o mais hábil dos mágicos. No limite, ela oferece aos homens os meios necessários ao seu progresso ou à sua destruição e fá-lo num permanente jogo de espelhos sem que eles atinem ao certo no que vai acontecendo. Já o disseram poetas e filósofos e muitos que não se consideram nem uma coisa nem outra, mas que, em momentos de reflexão, se apercebem desse jogo, mas se declaram a si próprios incapazes de o contrariar ou inverter.

    Repare o leitor na palavra comunicar como exemplo. Todos a conhecem, alguns saberão a sua origem etimológica, a família a que pertence e as relações de forma e sentido que existem entre os seus componentes. Assim diz José Pedro Machado no seu Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa:” v. Do latim “communicare” (vj. Comungar).” E sobre “comungar” esclarece-nos: “v. Do latim “communicare”: ter ou pôr em comum; repartir, compartilhar; receber em comum, tomar a sua parte de…” Por comungar entende-se, na linguagem religiosa, receber, através do pão, o Copo de Cristo, operando-se entre Deus e o homem uma comunicação íntima. No código linguístico quotidiano, usamos o vocábulo em expressões como “comungar duma opinião” ou “comungar das mesmas ideias” ou ainda “verificou-se uma comunhão de interesses entre…”, logo, com o sentido de compartilhar, ter ou pôr em comum.

    O MUNDO É AGORA

    UMA ALDEIA GLOBAL

    Nunca se utilizou com tão grande intensidade e frequência a palavra comunicar (comunicação) como nos dias que vão correndo e a todos parece claro que jamais existiu tão reduzida partilha, tão pouca comunhão. Ter-se-á intensificado o uso dessas palavras por se reconhecer a existência de falha nas relações humanas e obviar o seguimento desse rumo – intenção virtuosa – ou a desunião conduziu à redescoberta dessas palavras só para mascarar o fenómeno que vinha a ganhar terreno – razão hipócrita ou cínica – havendo ainda outras circunstâncias que a tal conduziram?

    Embora as etapas na história do devir humano não sejam estanques, talvez possamos situar o incremento da comunicação depois da Primeira Guerra Mundial em que lhe foi dada “…categoria de campo de investigação científica” como se lê no Grande Dicionário Enciclopédico editado sob a direcção de Maria Fernanda Martins Soares e Vítor Wladimiro Ferreira. Situemos então a mudança na segunda década do século XX. Os Meios de Comunicação Social tiveram papel de relevo no desenvolvimento das sociedades mas têm exercido igualmente efeitos nefastos, servindo-se das palavras para atingir determinados objectivos que podem não ser os nossos. Com a sua acção, as distâncias reduziram-se, houve uma aproximação entre as populações até então relativamente isoladas, mas descaracterizaram-se as vivências de grupos populacionais que partilhavam ritos, praxes, tradições e maneiras de estar e de agir. Ficou um reduzidíssimo espaço para o que antes os caracterizava, enquanto a comunicação social uniformizava sentimentos, pensamentos e condutas. Não importa mais a proximidade ou o afastamento físico, porque a comunicação impõe as regras mesmo sem o dizer. O mundo é, agora uma aldeia global em que a participação do indivíduo não é tida em conta e, subliminarmente ou com a simpatia de um convite, todos somos induzidos a adoptar os mesmos tiques, a pautar-nos pelas supostas preferências de uma figura pública ou de um tentador sorriso de felicidade: vestimos o que eles vestem, usamos o seu dentífrico, o mesmo perfume ou after-shave, aprendemos as músicas da banda x ou y e memorizamos os nomes dos respectivos autores sem que tivéssemos manifestado a nossa vontade.

    O QUE SIGNIFICA O

    TERMO “AMOR”

    Atente-se no vocábulo “amor” ou no seu equivalente em qualquer idioma. O leitor tem a certeza do seu verdadeiro significado? Se consultar um bom dicionário, encontrará um largo espaço a tentar esclarecê-lo. O Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, comummente chamado Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, dedica-lhe três quartos de página. Na tentativa de explicá-lo, torna prolixo o que nos parece tão simples. Começa por elucidar que se trata de “predisposição da afectividade e da vontade, orientada para o objecto que a inspira e é reconhecido como bem.” E dá seguimento a um conjunto de valores e de expressões em que vemos reflectidas diferentes imagens segundo critérios e circunstâncias em que a palavra tem sido empregada. Não perdendo o sentido primordial, assume prismas muito diversos como “amor maternal ou paternal”, “amor fraterno”, “amor de Deus”, “amor à Pátria”, “amor à verdade” “amor ao trabalho, à arte, ao ofício, ao dinheiro”, amor a alguém, em graus variáveis de intensidade e de expressão. O que basicamente é uma predisposição da afectividade e da vontade orientada para determinado objecto pode “assumir carácter passional o que, geralmente, implica atracção sexual”. Pressuposto é que este sentimento, em qualquer acepção, seja duradouro, caso contrário não passará de mera engano dos sentidos.

    Este espaço não se compadece de largas exposições e assim resta dizer que milhares de outras palavras poderiam ser aqui analisadas. O que leva muitas pessoas a afirmar que “a língua portuguesa é traiçoeira” não deve entender-se apenas em relação ao nosso idioma, como a qualquer outro, à linguagem verbal como um todo, faculdade dos seres humanos com raras excepções, que lhes tem permitido entenderem-se, compartilhar e alargar o conhecimento, vencendo barreiras de toda a espécie, inclusive a diversidade dos idiomas ainda quando é sabido que “traduttoti, tradittori” o mesmo é dizer ultrapassando as especificidades de cada um desses idiomas e as limitações de quem os reconverte. Em todo o caso, esse jogo de espelhos, ou outra expressão que melhor nos pareça, é o que faz a enormíssima riqueza da linguagem.

    Por: Nuno Afonso

     

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