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Edição de 31-03-2024
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    Arquivo: Edição de 31-07-2008

    SECÇÃO: Crónicas


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    De triciclo em sítio de paus e pedras

    Alguém dizia do meu tio mais novo em tom superlativamente admirativo, se calhar mais de inveja que de admiração:

    – O senhor Zezé é home mim importante, tem óculos, bicicleta e grafonola…

    Passavam os anos quarenta do derradeiro século e ainda não se faziam notar as mudanças que começariam a ocorrer pouco tempo depois. No interior transmontano, plácidos mudavam os dias, não muito diversos dos que seus antepassados viveram, retirando com imenso esforço o sustento das terras exauridas, não obstante o estrume de animais que nelas enterravam, criando os laregos para os cevarem depois e, com as suas carnes e derivados, adularem seus estômagos habitualmente forrados com batatas e hortaliça, folgazando nos bailaricos domingueiros e nos dias de festa associados ao calendário religioso, raramente saindo a não ser para ir à cidade a três, a doze ou a vinte e um de cada mês a mercar utensílios de necessidade quiçá para vender a criação de pequenos animais domésticos reconvertida em bacalhau, azeite e mercearia para ocasiões especiais.

    Em obediência às estações do ano, e com recurso à sabedoria acumulada ao longo de séculos de duro granjeio, semeavam-se as terras no Outono e na Primavera após conveniente preparação dos solos e procedia-se às colheitas nos meses de Verão. Durante o Inverno pesava menos o fardo do trabalho, porque a chuva, as geadas constantes e os nevões ocasionais não permitiam outras ocupações que não fossem as de acompanhar o desenvolvimento das culturas cerealíferas, cuidar da alimentação dos animais e regular o curso das águas para evitar desmandos da Natureza.

    Tio Zezé, o mais novo dos irmãos do meu pai, era homem bem apessoado no seu metro e oitenta de altura e correspondente compleição, traços fisionómicos bem desenhados, cabelo castanho em ondas e um certo apuro no trajar, admirado pelos seus iguais e requestado pelas moças mais donairosas daqueles lugares. Usava óculos não como adereço a valorizar a aparência mas por necessidade, a miopia a tal aconselhava. Provavelmente, outras pessoas desse meio teriam também dificuldades de visão, mas não as consideravam impeditivas ao exercício da sua vida quotidiana. O tio Zezé, não obstante ter sido criado na aldeia, gostava de se apresentar bem e os óculos corrigiam-lhe os tiques derivados da doença e melhoravam a sua aparência. Os outros é que não tinham disso entendimento.

    Quanto à grafonola, nunca outra música se ouvira por aquelas bandas que não fosse a dos tocadores de gaita de foles, realejo, bandolim ou viola, cantigas desfiadas nos trabalhos do campo ou em descantes nas romarias, além, naturalmente, dos gorjeios dos pássaros em dias primaveris. Essa maravilha seria para muitos motivo de tamanho espanto como um automóvel voador ou uma vaca de quatro chifres. A grafonola a que se referiam tocava, de facto, em casa do tio Zezé, mas era do meu pai que a trouxera do Brasil, porque durante algum tempo vivemos na casa que ao meu tio coubera por herança familiar. Com efeito, nas noites de Inverno após a ceia, quase todos os homens da terra se juntavam na casa que ocupávamos para ouvir os discos que o meu pai trouxera da estranja ou ia acrescentando ao rol nas frequentes deslocações ao Porto em negócio. Eu teria os meus seis ou sete anos, mas lembro-me muito bem desses aprazíveis serões em que cada vizinho declarava a sua preferência por uma determinada música a que o meu pai gostosamente respondia, colocando esse disco a girar no prato da grafonola. Quase todos ouviram ali, pela primeira vez, as vozes de fadistas como Amália Rodrigues, Hermínia Silva, Maria Alice e outras, canções de Coimbra interpretadas por Menano e Edmundo Bettencourt e ainda cançonetistas brasileiros como Cármen Miranda, Augusto Alves, Noel Rosa e muitos mais. Quantas dessas canções me ressoam ainda ao ouvido!

    Bicicleta na minha aldeia? Tal como em centenas de outras povoações, não havia estrada que a ligasse à cidade ou a outras terras vizinhas e os caminhos não estimulavam quem quer que fosse a comprar uma preciosidade dessas – nesse tempo possuir tal objecto era mesmo um luxo – para circular em vias mais adequadas a carros de bois. Por isso mesmo, creio bem que o tio Zezé não sabia andar de bicicleta como, de resto, acontecia à esmagadora maioria dos que viviam no campo. Quem fosse para a cidade aprendia, alugando uma, nas lojas do género. Em seu desconhecimento, o autor daquela declaração deve ter confundido bicicleta com o triciclo que os meus pais trouxeram do Brasil e que tentei usar nas ruas lodosas e cheias de pedras da aldeia com toda a garotada atrás de mim a empurrar e a pedir-me que os deixasse “dar uma volta”. Certo é que esse foi um curto episódio da minha vida, porque eram muitos os miúdos que me acompanhavam, alguns já mais crescidos, consequentemente mais pesados do que eu e, pouco tempo depois, o meu brinquedo partiu-se. O meu pai ficou muito aborrecido nessa ocasião e nunca mais soube do seu paradeiro. Vim a saber, quase meio século depois, quem foi o responsável imediato do incidente, mas então já não tinha qualquer importância.

    Por: Nuno Afonso

     

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