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    Arquivo: Edição de 15-01-2008

    SECÇÃO: Cultura


    Uma cama para cinco

    (extracto do conto “Comunidade”)

    «Estendo o pé e toco com o calcanhar numa bochecha de carne macia e morna; viro-me para o lado esquerdo, de costas para a luz do candeeiro; e bafeja-me um hálito calmo e suave; faço um gesto ao acaso no escuro e a mão, involuntária tenaz de dedos, pulso, sangue latejante, descai-me sobre um seio morno nu ou numa cabecita de bebé, com um tufo de penugem preta no cocuruto da careca, a moleirinha latejante; respiramos na boca uns dos outros, trocamos pernas e braços, bafos suor uns com os outros, uns pelos outros, tão conchegados, tão embrulhados e enleados num mesmo calor como se as nossas veias e artérias transportassem o mesmo sangue girando, palpitassem, compassadamente, silenciosamente, duma igual vivificante seiva. (...) Somos cinco numa cama. Para a cabeceira, eu, a rapariga, o bebé de dias; para os pés, o miúdo e a miúda mais pequena. Toco com o pé numa rosca de carne meiga e macia: é a pernita da Lina, que dorme à minha frente. Apago a luz, cansado de ler parvoíces que só em português é possível ler, e viro-me para o lado esquerdo: é um hálito levemente soprado, pedindo beijos no escuro que me embala até adormecer. Voltamo-nos, remexemos, tomados pelo medo de estarmos vivos, pela alegria dos sonhos, quem sabe!, e encontramos, chocamos carne, carne que não é nossa, que é um exagero, um a-mais do nosso corpo mas aqui, tão perto e tão quente, é como se fosse nossa carne também: agarrada (palpitante, latejando) pelos nossos dedos; calada (dormindo, confiante) encostada ao nosso suor. (...) Cá em casa a nossa cama é a nossa liberdade imediata. Tem os nomes que quiserem. É a cama do pai de família, austero e mandão, ou do dorminhoco pesado quando regressa embriagado para casa. É a cama do libertino. É o leito (suponhamos!) Luís-Qualquer-Coisa, XV ou XVI, do milionário, porque nela somos reis e milionários de ternura e de abraços, de palavras ciciadas; e é o catre sem lençóis, fracas mantas, e mau cheiro, do maltês que não sabe para onde o destino o manda (e somos isto, e que de longes terras viemos! quantos naufrágios! quanta coisa fomos largando para facilitar a marcha até aqui!), a enxerga do pedinte (e nós o somos também: porque temos falta de tudo e porque acordamos de manhã sem uma bucha de pão para dar às crianças e sem saber ainda onde o ir buscar). Podia ser (dava para) um bom título de uma comédia picante, bulevardesca; UMA CAMA PARA CINCO; idem para um filme neo-realista, onde nem cama houvesse, só umas palhas podres e mijadas, com gaibéus ensonados, embrutecidos do calor e do vinho, fedor de pés, talvez um harmónio desafiando as cigarras e os grilos na cálida noite da planície alentejana. Uma cama para cinco, em herança, constituía um demorado caso de partilhas. Nós dormimos. As vezes, muitas vezes, beijos e abraços».

    Luiz Pacheco

     

     

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